Meu interesse, do ponto de vista da Psicologia Social, ao estudar crônicas publicadas em periódicos no século XIX, está diretamente relacionado à inserção e divulgação do conceito de modernidade entre nós, especialmente no que diz respeito à dinâmica humana que as crônicas nos apresentam, sendo parte dela relativa ao projeto de modernidade que está se instalando no Ocidente naquele momento. Penso também, que para melhor compreender o presente, temos que resgatar fragmentos do passado e reconstruir, a partir deles, o caminho por nós traçado e definido enquanto sociedade e singularidades sociais. falar do passado é partir de fragmentos, de pedaços esparsos de memória circunstanciada, memória individual e social, presentes também em papéis, monumentos, jornais, livros, cartões, medalhas, objetos de todo gênero, nos quais a humanidade deixou impressa as marcas do que foi feito.Acredito que parte das respostas que buscamos para o nosso modo de vida contemporâneo se encontra no passado, no que diz respeito à sociedade e aos sujeitos que a compõem e que, nesse sentido, é adequado dizer com Sartre, que o homem não possui outro legislador senão ele próprio.
Historiadores, psicólogos e psiquiatras, em suas atividades profissionais são, talvez, os maiores interessados em desvelar o passado: uns na tentativa de descobrir o sentido do que a humanidade produziu, através do que ela foi deixando como registro de sua passagem, outros, na busca da constituição do percurso de um único ser humano que dele rastreiam as pegadas na fala deste mesmo homem. Naquele que diz e no que silencia, há, em cada um, um passado a ser desvelado que pode ser a chave para se compreender o que ele construiu como o sentido de si mesmo.
Sartreanamente falando, o passado nos aparece "situado", um horizonte que vamos lentamente deixando para trás mas cujas recordações carregamos ao longo da vida. Ele é fragmento, pedaços distribuídos em um número grandioso de elementos cuja totalidade, às vezes, acreditamos ter. Do ponto de vista da Psicologia, o passado é fundamental na compreensão do presente que se vive, na tentativa de pelo menos vislumbrar como chegamos a ele e como nele o futuro se desdobra. São situações carregadas de sentimentos misturadas a imagens, livros, cartas, cheiros, sabores, lugares, cujo vínculo com o passado acaba nos remetendo a um tempo que acreditávamos esquecido. Remeter-se a estes fragmentos dispersos da história de cada um, é ter clareza de que partimos do presente para lançar nossos olhos a esses momentos cristalizados e dar-lhes um novo sentido, retirar sua capa de imobilidade conectando-os em função de um projeto que se evidencia, que não é só o da singularidade de cada um mas que pertence ao mundo social no qual estamos inseridos e do qual não temos como escapar. Desta forma, na correlação homem/mundo, é possível perceber, ao mesmo tempo, um e muitos passados como parte do desenrolar da vida em todos os seus contextos.
Com um pé apoiado no Existencialismo sartriano e na Fenomenologia, e outro na tentativa de estabelecer um diálogo transdisciplinar com as áreas da Ciências Humanas e Sociais, parto do princípio que as criações humanas são essencialmente "produções de sentido que expressam de forma singular os complexos processos de realidade nos quais o homem está envolvido, mas sem constituir um mero [reflexo] destes" (González Rey, 2003, p. IX). Integram, portanto, os diferentes aspectos do mundo em que o sujeito vive e aparecem, em cada um destes sujeitos ou do espaço social concreto, de forma única, isto é, "organizados em seu caráter subjetivo pela história de seus protagonistas" (id. ibid.). Se as criações humanas são produções de sentido, então é fundamental buscar através de linguagens diferentes, que podem se articular a construções teóricas, uma maior inteligibilidade em relação à subjetividade humana e sua representação nas multifacetadas atividades e nos diversos contextos em que a vida concreta destes indivíduos se desenvolve. Neste sentido, buscar articulações entre os saberes da Psicologia, História, Literatura, Comunicação e Sociologia é iluminar a cena da história concreta dos homens, num esforço de compreensão que transcende fronteiras convencionais das disciplinas acadêmicas em direção a um conceito das Ciências Humanas e Sociais, buscando uma "unidade de percepção", há muito perdida numa pulverização empobrecedora dos saberes que tem o homem como centro. Temos isto como nosso objetivo e prazeiroso desafio. É também apontar, como afirmou Marc Bloch (2001), que "Toda ciência tomada isoladamente, não significa senão um fragmento do universal movimento rumo ao conhecimento" (p. 50) e que, "as investigações históricas [bem como as psicológicas] não sofrem de autarquia. Isolado, nenhum deles [especialistas] jamais compreenderá nada senão pela metade, mesmo em seu próprio campo de estudo" (p.68).
Como psicóloga, interessada na dinâmica humana contemporânea, penso que não há como decifrar os arcanos de nossa modernidade sem rastrear as pegadas de sua construção. Não que isto implique a crença de uma suposta linearidade de construção "evolutiva" deste percurso em direção a uma cada vez melhor e mais "progressista" humanidade, como reflexo de uma caminhada hipotética da barbárie à civilização. Pelo contrário, é minha crença inicial de que essa construção do nosso projeto de modernidade foi atravessada por contradições e contra-marchas, por perdas e ganhos e que a sociedade, necessariamente, não se tornou gradativamente "melhor" - o que implicaria uma ampla e séria discussão de valores - mas inexoravelmente se tornou diferente de si mesma, num lento e por vezes doloroso processo de superação de cada momento histórico em direção ao seguinte. Tal como Hegel já nos ensinava, ela irá superar cada um destes momentos ao reter em seu "novo" projeto de modernidade o que achou necessário, o que lhe pudesse servir para dar conta do momento seguinte, deixando para trás, na memória dos que sobreviveram e nos diversos registros escritos do que pensou fazer ou mesmo realizou, configurados em documentos, livros, revistas, jornais, almanaques, propagandas, artes e ciências, tecnologias que produziu, ou que decidiu "esquecer". Tenho me concentrado nesse "esquecimento", para que a memória de uma construção social, tão longa e fecunda, não se limite, em nós psicólogos, ao que dela restou na contemporaneidade e que condicionou as circunstâncias de nossa existência, mas que, não tendo se fundado por si mesma no presente recente, é caudatária de uma longa história de "superações" que merecem e precisam ser desveladas, pois reafirmam um laço identitário com um passado que afinal nunca passa, mas é somente "superado". Mas remeter, porém, alguém ao seu passado, não o conduz a um lugar tranqüilo e neutro dentro de si. Só aparentemente podemos pensar este lugar dentro de nós como um espaço neutro. Ao nos deslocarmos em direção a ele, espontaneamente ou por uma "provocação" externa, nos conduzimos a um lugar idiossincraticamente construído dentro de nós mesmos a partir da situação histórica que o presente determine.
A significação que constituímos é resultado de interação social, que conecta homem e mundo no processo de construção de sentidos. O social, desta forma, se produz através de uma verdadeira rede de sentidos, de marcos de referência simbólicos através dos quais os homens se comunicam, criam uma identidade coletiva e designam o seu lugar frente às instituições de poder desta dada sociedade. Através de suas representações ideológicas, exprimem seus desejos e aspirações, justificam seus objetivos, concebem o passado como o desejam recordar, constituindo-o para si, e criam utopias para o seu futuro. É assim que constituímos o passado que desejamos recordar e onde as coisas ganham a espessura que passamos a lhes atribuir transformando e assimilando o passado e o heterogêneo, permitindo-nos cicatrizar nossas feridas, reparar nossas perdas, reconstituir forças partidas e inventar, a partir daí, futuros possíveis. Lidar com o passado é mexer com fragmentos, com pedaços esparsos de memória circunstanciada, gravados em papéis, monumentos, jornais, livros, cartões, medalhas, objetos de todo gênero, nos quais a humanidade deixou impressas as marcas do que foi feito.
As crônicas são fragmentos e, ao mesmo tempo, elementos do social que tornam perceptível a entrada da modernidade no Rio de Janeiro, além da inserção de uma nova forma de pensar o mundo e de se relacionar com ele. Na esteira da Escola dos Annales, especialmente de Lucien Febvre, podemos pensar na idéia de um "instrumental intelectual" 1 criado e disponibilizado em cada época (Burke, 1991). Este é o nível do cotidiano, situado "no ponto de junção do individual e do coletivo", afirma Le Goff (1995, p. 71). Lembrar a importância do psíquico nestas questões, é tornar presente a afirmação de Marc Bloch no seu livro Apologia da História, de que "os fatos históricos são por essência fatos psicológicos" (2001, p. 157). Estes fragmentos, da vida no século XIX, indicam também os sinais mais públicos e visíveis do projeto da modernidade que se expande, ao mesmo tempo que se tornam meio de divulgação eficaz do "espírito do tempo" do século XIX. A vida, exposta nas crônicas folhetinescas, proporciona uma noção do impacto da modernidade sobre os cariocas nesse período.
Referências Bibliográficas
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Fontes Secundárias
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A noção está ligada ao conceito , "aparelhagem mental" desenvolvido por Lucien Febvre ao longo de suas pesquisas. Para Febvre, "A cada civilização cabe sua aparelhagem mental... ela vale por uma época que a utiliza; não vale pela eternidade, nem para a humanidade". Ele estava convencido de que os homens do passado "não viviam, não agiam como nós", portanto, é necessário explorar exaustivamente uma cultura das mais variadas perspectivas pois é com esses "instrumentos" que se constrói a experiência, tanto individual quanto coletiva (Febvre apud Revel, "Aparelhagem Mental", In: Burguière, 1993, p.66-67 e p.326-7). ↩
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Este termo foi criado para designar os textos publicados em jornais e revistas nos meados do século XIX que passaram a ser conhecidos tanto por crônicas como por folhetins, diferenciando-os da crônica do fim do século XIX e início do século XX e, ao mesmo tempo, dos folhetins romances, também publicados nos rodapés dos jornais. ↩
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Coletânea de textos em espanhol: El individui y la libertad, ensayos de crítica de la cultura (1998); coletânea em francês: Phhilosophie de la modernité. La femme, la ville, l’individualisme (1989) e Sociologie et épistemologie (1991). Ver também coletânea de seus textos em português organizada por Jessé Souza e Berthold Öelze, Simmel e a modernidade (1998); Filosofia do Amor (1993). ↩
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Este conceito atravessa toda a obra de Sartre, mas sugiro ver Situations II - Présentations des Temps Modernes, 1964 p. 27-28, em que ele expõe rapidamente esta idéia] ↩