Introdução
Kowawa Kapukaja Apurinã gravou este vídeo em setembro de 2019, antes da deflagração da Pandemia da Covid-19. Ela relatou a Sens Public que sequer imaginava o que estava por vir. Independente disso, convoca todos os seres humanos para o que ela chama “da batalha em favor da humanidade, a batalha da humanidade”. Pelo direito ao bem-viver, Kowawa insiste em seu chamamento. Três anos depois, suas palavras ganham outro significado. Não sabia ela que, apenas no Brasil, mais de 600 mil pessoas perderiam suas vidas em nome de um governo que, como ela própria já apontara, não recusava a alcunha de “genocida”. Que o apelo de Kowawa Apurinã para nunca desistirmos de “buscar o nosso bem viver” ecoe e resista ao tempo. Este vídeo é premonitório, considerando-se que as populações indígenas sempre foram confrontadas às catástrofes trazidas pela classe dominante, o que já fora escrito. Daí a necessidade de estarmos atentos ao grande chamado da mãe Terra.
Antes da pandemia
Eu sou Kowawa Apurinã, do povo Apurinã do estado do Amazonas. Meu nome é Pietra Dolamita, sou antropóloga e arte-educadora. Moro na cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul. Estou aqui para falar sobre mulheres, sobre mulheres indígenas. Sobre as mulheres que ocupam os lugares e que vivem nesse planeta. Estamos falando do planeta Terra. Estamos falando sobre nós, nós guardiãs da semente, nós mulheres que vivemos nas florestas e que vivemos no contexto urbano, que vivemos e sofremos violência de todos os modos que podem acontecer nessa civilização. Essa civilização que veio nos atacar desde 1500, quando chegaram as caravelas e nos disseram que nós deveríamos morrer. Eles tinham um pacto : de nos matar! Não deu certo! Resistimos! Estamos resistindo …
Há um plano genocida contra os povos indígenas. Há um plano genocida contra as mulheres indígenas. Há um plano genocida contra as crianças, que estão morrendo de fome no interior desse Brasil, nas florestas por falta de médicos, no Mato Grosso do Sul por falta de comida. Nós iremos resistir, pois o que nos é sagrado é a Terra, porque o que nos é sagrado é o nosso corpo. O nosso corpo resiste, é o nosso corpo que colocamos na frente das batalhas. Estamos enfrentando a maior batalha, que é a batalha de sobrevivermos. A nossa luta não é uma luta solitária. Nós lutamos, nós mulheres indígenas lutamos do lado dos homens indígenas, das crianças, dos animais, das florestas, dos cerrados, de toda a natureza e de toda a Terra. Não é uma luta solitária, é uma luta dos encantados, dos espíritos das florestas, das águas, dos ventos, das flores, dos espinhos e de dores.
Mas não queremos salvar a Terra. Queremos salvar a humanidade, pois é a humanidade que está em perigo. Porque quando todas as reservas naturais estiverem mortas, quando o plano genocida desse governo assassino, quando começarem a cavar os ossos da Terra, nossa mãe revidará. E todos – indígenas, brancos e negros – não resistirão ao grande chamado da mãe. E ela sim dirá: não quero mais isso no meu lugar, não quero mais esse povo aqui. E quem voltará? Porque nós, povos indígenas, somos parte da Terra, nós, povos indígenas, sofremos junto com a Terra. Quando derrubam as florestas, quando cavam as terras atrás de minérios em busca da riqueza, ferem o nosso corpo. Nós, povos indígenas, nós, mulheres indígenas, somos a maior prova da existência de um outro modo de viver, e esse modo de viver está em nós. Nós buscamos o bem viver, buscamos este bem viver de estarmos aqui hoje resistindo e chamando a todos e a todas para esta luta, a maior de todas as batalhas, a batalha em favor da humanidade, da nossa humanidade.
Gratidão por estarmos aqui. Lutaremos sempre, morreremos sempre, mas nunca desistiremos de buscar o nosso bem viver e essa terra sem mágoas.
Eu sou Kowawa Apurinã e estou aqui chamando vocês.
Kowawa Kapukaja Apurinã
Indígena da etnia Apurinã do Médio Purus, Sul do Amazonas. Doutoranda em Antropologia nas Universidade Federal Fluminense e Université Paris 3 Sorbonne Nouvelle. Mestra em Antropologia e graduada em Direito e em Artes Visuais. Ativista, atua principalmente na educação indígena, educação ambiental, questões raciais, ações afirmativas, mulheres indígenas, violências e ancestralidade indígena. Membra fundadora do Instituto Pupykary do Povo Apurinã, cofundadora da Articulação Brasileira de Indígenas Antropológes, do coletivo Artivismo Indígena e colaboradora do veículo de jornalismo independente Portal Catarinas. Atualmente, desenvolve pesquisa com o Povo Tupinambá, em Acuipe, Olivença, nas áreas de Retomadas no Sul da Bahia – Brasil.