Introdução
Meu povo, o Pataxó, é um povo indígena que habita tradicionalmente a região do sul da Bahia e do nordeste de Minas Gerais. Na realidade, ocupamos nossas terras desde antes da chegada do português no Brasil. Hoje, algumas de nossas aldeias ficam no Parque Nacional e Histórico do Monte Pascoal. A história diz que Monte Pascoal foi o primeiro pedaço de terra – a nossa terra, de meus ancestrais e minha – que os portugueses avistaram. Jamais saímos daqui, mas infelizmente ainda não demarcaram nossas terras, apesar de existir um termo de compromisso assinado entre a chefia do Parque e as pessoas ali aldeadas. É algo incômodo que vejam a história de nosso território apenas como a do local em que os portugueses primeiramente chegaram, e não como um espaço Pataxó. Não demarcar e manter nossas aldeias dentro desse território que não é reconhecido como nosso é a reprodução simbólica da violência que continuamente sofremos.
Esses vídeos e essas fotografias foram feitos na aldeia Tibá, fundada por meus avós em 2003 e que fica na minha cidade natal, Cumuruxatiba - BA. Parte da minha família aparece nessas imagens – minhas irmãs Letícia e Leísa, minha mãe Maria Lúcia, minhas tias Antônia e Adelice, e alguns de meus sobrinhos e primos. Eu fico muito feliz em poder demonstrar um pouco do trabalho e da luta de meu povo. Nós cultivamos e cuidamos da nossa terra, nós lutamos pela manutenção da nossa cultura Pataxó.
Atualmente, 32 famílias moram na Tibá, onde trabalham plantando alimentos tradicionais e com etnoturismo, educação e projetos comunitários. Um dos meios de sustento da comunidade é a plantação da mandioca, com a qual fazemos a farinha. A farinha é um alimento importante para a comunidade seja para uso doméstico ou para o comércio. As visitas guiadas à nossa aldeia – o etnoturismo – também geram renda para as famílias e divulgam nosso modo de vida.
Um dos sonhos da minha avó Zabelê1 era a educação de seu povo. Ela dizia que não estudou, mas gostaria que seus filhos, netos e bisnetos estudassem. Assim, ela lutou bastante, viajou, mobilizou a comunidade e chegou a reunir-se com o reitor da Universidade Estadual da Bahia - UNEB e outros líderes educacionais para que houvesse uma escola em nossa aldeia. A luta dela rendeu frutos, e hoje há uma escola na Tibá. A escola ainda é muito pequena e falta bastante coisa, mas ela é um importante um passo de uma longa caminhada.
Escrever esse texto, gravar uma apresentação do nosso Awê2, mostrar o projeto de reflorestamento em que trabalhamos e falar um pouco sobre nossa cultura é manter viva a memória de meus avós que tanto lutaram e sonharam com uma vida melhor para seu povo, mas que infelizmente se encantaram sem ver o reconhecimento oficial de nossa terra. Por isso, nós continuamos aqui resistindo bravamente e honrando toda a luta feita até aqui.
Aldeia Tibá – Prado, Bahia
Este vídeo foi criado a partir de depoimentos feitos pelo Coletivo Pataxó e enviados a Sens Public.
Farinhada, nutrir o corpo e transmitir nossa cultura
O processo é trabalhoso, pois primeiro é feita a colheita da mandioca ; SP1664-img4 após ela é levada para a farinheira em carrinho de mão, carroça ou carro, a depender da distância da plantação. A mandioca então é descascada, lavada e triturada pelo motor que é acoplado na farinheira. Em seguida, é colocada em sacos grandes de 20kg/20kg para passar pelo processo da prensa, em que sai todo o líquido presente na massa, e depois ficar em repouso em média por 8 horas. Logo após passa pela peneira e é colocada no forno para ser torrada e virar farinha.
Na farinhada também produzimos outros coisas, como o beiju e o bolo de cuba. Em uma parte da massa, após ser triturada, mas antes de ser torrada e virar farinha, é adicionada água e colocada em um saco, que é torcido lateralmente para retirar a água da massa. Em uma vasilha separada é colocada a água que saiu da massa, e essa água ficará em repouso por em média 12 horas. Após isso é removida a água e, no fundo da vasilha, ficará uma massa branca que é o polvilho que é usado para fazer farinha de tapioca, mingau, beiju de rolo, beiju de côco.
A farinhada é um momento familiar especial, pois Zabelê sempre cantava alegremente quando fazia farinha, em todos os processos, agradecendo a Tupã3. Hoje em dia, nós, os filhos, os netos e os bisnetos de Zabelê fazemos o awê no início da farinhada para honrar nossos ancestrais e nossa cultura.
Ataques contra o Povo Pataxó
O sol esquenta os corpos, mar e rios exuberantes fornecem o alimento e a terra é fértil e o que se planta nasce. Assim é o território dos Pataxó no extremo sul da Bahia. Ali, o conceito indígena do bem viver é palpável e faz parte do cotidiano. Entretanto, apesar desse meio ambiente paradisíaco, o governo Bolsonaro tem sido particularmente violento para o povo Pataxó.
Eleito com uma pauta contrária aos povos indígenas, o presidente Bolsonaro possibilitou uma série de violências contra os Pataxó. O desmonte da FUNAI – Fundação Nacional do Índio – enquanto órgão de defesa dos direitos e interesses dos povos indígenas foi o começo. Em seguida, a pandemia da Covid-19 foi bastante agressiva com a comunidade, ceifando diversas vidas, devido também à precária resposta dada pelo governo. Não fosse a articulação dos próprios povos indígenas, haveria ainda mais mortes. Finalmente, no ocaso desse governo, mais sangue indígena foi derramado, uma vez que a região do extremo Sul da Bahia tornou-se palco de incessantes conflitos fundiários. Assim, é preciso fazer uma cronologia das mais recentes agressões.
Segundo o MUPOIBA – Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia – e a APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, as comunidades de Boca da Mata e de Cassiana, que ficam na Terra Indígena de Barra Velha, passaram o mês de agosto de 2022 sob o sítio de forças paramilitares lideradas por fazendeiros locais.
No dia 17 de agosto, as tensões se acirraram entre Pataxós e fazendeiros, e pistoleiros invadiram a Aldeia de Boca da Mata. Tiros foram disparados como uma tentativa de intimidar a comunidade.
Dois dias depois, em 19 de agosto, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados solicitou que autoridades públicas tomassem providências.
Infelizmente, o poder público mais uma vez falhou com o povo Pataxó, e no dia 03 de setembro o indígena Gustavo Silva da Conceição, um garoto de 14 anos, foi assassinado em um ataque de pistoleiros ocorrido na Terra Indígena de Comexatiba. Além de Gustavo, Pablo Yuri da Conceição, um adolescente de 16 anos, também foi baleado, mas sem risco de morte.
A violência não se esgotou com esse assassinato e, na madrugada do dia 05, novamente as forças paramilitares atacaram os Pataxó de Comexatiba. Segundo relatos dos indígenas, os agressores invadiram a aldeia, vandalizaram os bens e as casas, e chegaram a matar os cachorros que viviam na aldeia. Nenhum indígena ficou ferido nesse ataque porque eles se esconderam nas matas da região.
No dia 12 de setembro, mais uma vez a comunidade foi atacada por pistoleiros e, novamente, as pessoas foram obrigadas a esconderem-se nas matas para sobreviver.
Toda essa violência é decorrência de incongruências na demarcação do território indígena.
Em 1980, a Terra Indígena de Barra Velha foi demarcada com apenas 8,6 mil hectares. Diante dessa demarcação incompatível com o tamanho do território Pataxó, em 2014, a FUNAI realizou um estudo em que atribuía 52,7 mil hectares a Barra Velha.
Contudo, as instituições públicas não tomaram nenhuma medida adicional e assim o processo de demarcação permanece paralisado.
Os Pataxó, vendo a inércia do poder público e o constante avanço dos fazendeiros em direção aos territórios indígenas, iniciaram um processo de retomada de seu território.
Em janeiro de 2022, os Pataxó de Barra Velha retomaram o território da comunidade “Quero Vê”. Em uma vitória judicial, a Justiça Federal, no dia 9 de junho, negou o pedido de reintegração de posse contra a “Quero Vê”. Desse modo, os Pataxó ganharam respaldo jurídico para permanecer em seu território.
Dia 22 de junho, cerca de 180 indígenas retomaram uma área de Comexatiba que vinha sendo ocupada por empresas de produção de celulose. Com a supervisão do Ministério Público Federal – MPF, empresas e Pataxós iniciaram o diáSP1664-img4. Os indígenas ali permanecem em seu território ancestral.
Dia 25 de junho, um outro grupo de indígenas de Barra Velha iniciou a recuperação de uma outra área. No entanto, já no dia seguinte os indígenas foram expulsos por fazendeiros locais. Segundo relatos, vários homens encapuzados, portando armas de grosso calibre, foram até o local para expulsar os indígenas. Alguns desses homens se identificaram como policiais e seguranças dos fazendeiros. Eles argumentaram que faziam parte de uma reunião de agropecuaristas locais, cujo objetivo é frear a retomada da terra por parte dos indígenas.
Os fazendeiros, os grileiros e a extrema-direita de fato estão se organizando no Sul da Bahia. Em 2021, foi fundado em Teixeira de Freitas o “Casarão Brasil”, a autointitulada primeira casa conservadora do Brasil. O espaço é voltado para a organização dos grupos conservadores locais e a defesa de suas pautas, que não incluem as reinvindicações dos povos indígenas. Nabhan Garcia, secretário especial de assuntos fundiários do Ministério da Agricultura e presidente licenciado da UDR – União Democrática Ruralista, e o Capitão Alden, deputado estadual e deputado federal eleito, já declararam apoio ao grupo.
Considerando a escalada da violência, a Justiça Federal determinou, em setembro, a suspensão dos processos contra os indígenas da região e garantiu a permanência deles nas áreas retomadas em 2022. Enquanto o processo do Marco Temporal é julgado pelo Supremo Tribunal Federal – STF, o ministro Edson Fachin suspendeu todos os processos que possam resultar em despejos ou retrocessos nos direitos territoriais dos povos indígenas.
Enquanto isso, os Pataxó resistem, lutam e reivindicam poder bem viver em suas terras.
As imagens presentes neste vídeo são provenientes de arquivo pessoal de Gérard Wormser, com exceção das imagens dos ataques, fornecidas pela APIB.
Leonarda Costa Txàmãgay
Indígena pataxó, formada em Nutrição pela Universidade de Brasília - UnB e com especialização em “Saúde Indígena”, pela Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP. Durante 5 anos, atuou como nutricionista na Secretaria Especial de Saúde Indígena – SESAI na região de Porto Seguro, Bahia. Atualmente, mora em Montréal, Canada.
Coletivo Pataxó
Formado por diversos indígenas do povo Pataxó.
Zabelê, como também era chamada Luciana Ferreira, foi uma importante liderança Pataxó no sul da Bahia. Zabelê nasceu em 1932, na aldeia de Barra Velha, onde permaneceu até 1951, quando ocorreu o fatídico massacre que ficou conhecido como “Fogo de 51”. Em decorrência dessa violência extrema, a comunidade Pataxó se dispersa pela região. Zabelê ruma para Cumuruxatiba, cidade no extremo sul da Bahia, e ali participa da fundação da aldeia Tibá, onde até hoje vivem seus descendentes.↩
Canto e dança pataxó.↩
Deus na língua pataxó.↩