Bom dia, allin p’unchay1
Eis os meus desenhos, com um profundo agradecimento não só pela oportunidade de publicá-los em uma denúncia do que acontece hoje no país sob o governo Bolsonaro, mas também pelo respeito com que vocês trataram o tempo de produzi-los. São desenhos que brotaram da minha alma cansada pela necessidade de reviver e lutar, exatamente como aquelas plantinhas vulgares que brotam nas calçadas em cimentos, no meio da rua quente. Segue abaixo um breve discorrimento sobre os sopros que vieram nos desenhos.
Tecnologia Aruak – Há muito material acadêmico que afirma que os povos indígenas não tinham escrita. Isso chega a ser engraçado porque quando conhecemos os grafismos contidos em inúmeras formas e materiais percebemos que a tecnologia de comunicação escrita era vasta, complexa e própria para cada povo, em cada região do continente. Entre os povos indígenas há obviamente a combinação entre oralidade e escrita, porque diferente dos colonizadores, nós não nos baseávamos em uma lógica de exclusão binária. A expressão desse desenho é inspirada em uma arte comunicacional do tronco linguístico Aruak, ensinada a mim pelo Koixomuneti Terena Irineu Nje’a. É uma pena que quem chegou aqui tenha destruído tanto, quando poderia aprender tudo. Salve o quipu andino, os geoglifos de Nazca, os grafismos, todas as partes de nossas imensas tecnologias.
Continuidade – Em cada guerreira e guerreiro que caminha hoje há uma legião de ancestrais que se sacrificaram, se submeteram, que lutaram e que testemunharam os momentos históricos que nos trouxeram até 2021. Quem está vivo hoje também será ancestral e testemunha a continuidade da colonização, a destruição das mentes e da Terra pelo capitalismo e o ‘produtivismo’. Em nossos corpos e em nosso modo de vida, seja na aldeia ou nas cidades, que são aldeias mortas, também mora a continuidade da beleza do bem viver, do respeito a todos os modos e os seres vivos. Nossas histórias fazem parte de um todo. Não há passado, tudo está envolto e pulsa hoje. Por muitas e muitas vezes nos sentimos sufocados nas cidades porque nelas há tantas evidências de que caminhamos em cima dos ossos de nossos avós, e que ainda matam e continuam matando avós Rios, Matas e Montes em nome de bugigangas de plástico… É preciso muita reza, muito canto, muito retorno ao céu e à terra, muita mirada na lua para manter firme a identidade, que é compromisso, para não deixar o sufoco tomar conta, para não deixar que esqueçam que somos continuidade de raízes fortes, bem como Bolsonaro é continuidade de bandeirantes, de um plano de colonização, de catequização, de embranquecimento, de morte e de exploração.
Terra Viva – O presidente Bolsonaro elegeu-se mentindo de tantas formas quanto era possível, mas dentre todas a que me deixa mais triste foi a manipulação da fé das pessoas para se vender como um suposto herói ou messias. Até hoje ele continua repetindo para suas plateias o versículo do Evangelho de João 8:32 (“E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará”) como se ele fosse o detentor de alguma verdade ou, ampliando mais, como se a verdade pertencesse a certo grupo de pessoas que, por isso, têm o direito dado pelo divino de oprimir outras… Em oposição a essa maldade, os povos originários se mantêm na verdade da Terra Viva, do Sol que alimenta tudo e que nasce todos os dias para dar seguimento à dança de nascer, crescer e virar terra outra vez em paz. É por essa verdade que ainda estamos aqui, apesar de todas as formas de destruição de corpos e territórios pela qual já passamos desde 1492. Carregamos em nossa memória do corpo a memória do território. Por todo o continente – porque por todo o continente há luta contra a exploração, contra a violação da Terra – não reconhecemos as fronteiras inventadas para dividir poder geográfico. Somos terra, animais, todos os elementos sem graduação de importância. Essa é a verdade que liberta e que, se morre a Terra, morre tudo.
Passo Ancestral – Nossos ancestrais vivem em nós e por isso temos forças para lutar e dançar ainda hoje contra o Marco Temporal, mesmo com toneladas de ossos, cimento e plástico como fardos em nossas histórias. Somos indígenas de aldeias, de favelas, de matas e de beira de estrada, somos filhas de nossos povos aproveitando cada passo já dado para passar também. Parentes inspiradores compõem a imagem com o vermelho do achiote ao fundo e dentro.
Quando o tempo é dinheiro – O garimpo é uma das atividades exploratórias em que mais fica evidente que a lógica capitalista é um grande, é um gigante equívoco assassino. Crescemos ouvindo essa coisa de que tempo é dinheiro, e isso é um desrespeito enorme com a vida. O resultado disso é que não há sossego, não há beleza, não há vida para a maioria das pessoas quando essa lógica é levada a cabo. Desmatam para criar gado, para quê? Para as pessoas recolherem ossos e comerem nas cidades. Derrubam as árvores para quê? Garimpam para quê? Para matar crianças indígenas de múltiplas formas… Eu nunca mais consegui esquecer a foto da menina Yanomami desnutrida em uma rede; eu nunca mais consegui o título das matérias falando que duas crianças foram sugadas por uma draga de garimpo. Eu nunca mais consegui esquecer o matador segurando a onça preta assassinada na Terra Indígena Arariboia falando “imagina o que eu faço com um guardião”. Eu nunca consegui deixar de pensar na criança ascendendo fogo para fazer sopa de ossos no Rio de Janeiro em 2021. Essas coisas não se esquecem, elas ferem o profundo de nossos espíritos. A morte não pode ser essa coisa desonrosa, suja, injusta; a morte antes da hora e violenta, seja no tiro, por fome ou por Covid-19, não faz parte do tempo. Temos que voltar ao sentido da vida e do tempo ou, como disse Davi Kopenawa, “tudo isso não vai acabar bem para ninguém”.
Renata Ribeiro Inahuazo
Indígena em contexto de cidade, andina de Chinchaysuyo e Pindo. É artista nascida em Newark, Nova Jersey, EUA, de mãe e pai imigrantes do Brasil e do Equador. Atualmente vive em Taquaritinga, São Paulo, e se interessa pelo resgate da língua quéchua. Ativista política, feminista e trabalhadora na área de educação, desenhar foi a forma que encontrou para expressar as inquietudes pessoais e sociais que atravessam a história de seu corpo e do território de Abya Yala (Américas), com o qual se identifica como nativa. Também é membro da ARACI (Associação Renascer em Apoio à Cultura Indígena) desde 2014, associação que desempenha um papel importante de divulgação, valorização e defesa das culturas indígenas.
Bom dia em quechua cuzqueño.↩