Patrimônio marítimo: prefácio de Gérard Wormser
Encontrei Patrick Lamache de maneira fortuita durante o festival marítimo de Camaret-sur-Mer (Bretanha), em agosto de 2022. Proprietário de um belo RORC Classe III assinado por Eugène Cornu1, batizado de Danycan e lançado ao mar em Marselha, em 1949, ele foi responsável pela restauração e a classificação de seu veleiro como monumento histórico, além de ter realizado uma vasta pesquisa documental que deu origem ao livro intitulado Danycan, témoin sauvegardé de l’offensive des navigateurs français (2022). A história desse pequeno veleiro de cruzeiro oceânico, desde seu lançamento, tem como pano de fundo o avanço dos iatistas franceses que desafiaram a hegemonia inglesa nas regatas oceânicas. Cerca de quarenta armadores fizeram parte desse movimento, incluindo Michel de Rosanbo, segundo capitão do barco, bem como seus amigos e tripulantes, incluindo um jovem talentoso e promissor chamado Tabarly. Planos, recortes de imprensa e prêmios são intercalados com considerações pessoais sobre o processo de classificação do barco como monumento histórico, a experiência do autor com o iatismo clássico e seu testemunho sobre o trabalho de restauração exemplar realizado por ele. Um apêndice com os resultados dos franceses na RORC do pós-guerra, até 1963, e sobre os 300 iates que cruzaram o caminho do Danycan completa esse trabalho extremamente bem documentado e referenciado.
Guardado durante três anos, período em que seu proprietário se instalou no Brasil (São Paulo), o Danycan infelizmente não pôde participar das jornadas do patrimônio. A meu pedido, Patrick Lamache concordou em escrever para nossos leitores e assinantes.
Gérard Wormser
Danycan, saveiro das Bermudas, 1949-2019: o destino de um RORC Classe III
Um pequeno iate que poderia ter desaparecido
Durante o verão de 2008, ainda proprietário de meu Marauder, meu objetivo era adquirir outro plano Herbulot para reformar: um Cap Corse ou, de preferência, um Cap Horn, que conheci através de Jean Lacombe…
Embora a razão me levasse a seguir minha primeira inspiração, caí no feitiço dos magníficos élancements2 do Danycan, que na época estava em processo de decomposição, às margens do rio Morlaix, nos estaleiros Jézéquel.
Negligenciado ao longo de muitas temporadas, há mais de vinte e cinco anos sem ser lançado ao mar e praticamente esquecido desde a década de 1960, o Danycan chegou ao meu conhecimento durante minha extensa pesquisa nos estaleiros do Grand Ouest3.
Além de suas belas linhas, eu não conhecia mais nada sobre sua história, no momento da compra, em dezembro de 2008. Durante o trabalho de restauração, no ano seguinte, descobri os primeiros elementos da história desse clássico, graças a um artigo de G. Auzepy-Brenneur publicado no início de 2009, na revista Chasse-Marée, e às extensas pesquisas que se seguiram.
O cruiser-racer e sua tripulação
Um saveiro das Bermudas, plano Cornu de 24 pés de comprimento da linha d’água e de 2,48 m de boca, ele possui mais de 29 % d’élancement e comporta uma “canoa traseira”. É de construção relativamente leve, projetado para navegação costeira ou regatas em águas abertas. O estaleiro Pierre Delmez Constructions Nautiques, em Le Perreux-sur-Marne, lançou o Danycan em 19 de julho de 1949. Provavelmente, o objetivo de Eugène Cornu ao projetar o Danycan era otimizar um RORC Classe III. De fato, o estaleiro Delmez era especializado na construção de embarcações leves. Em resumo, o que Cornu perdeu em termos de dimensionamento (baixa espessura das bordas, tamanho das longarinas e armações, ausência de serre de bouchain4 e de mesa naútica, uma única porta separando as seções de proa e popa, etc.), ele ganhou em redução de deslocamento. O arquiteto foi pioneiro em termos de elegância e desempenho condicionando, de certa forma, a história desse pequeno iate clássico. A contribuição dos diferentes proprietários para o sucesso desse barco foi variável. Se há um nome a ser lembrado, é o do Conde de Rosanbo (o 4º de 12 proprietários), um iatista renomado na década de 1950, membro do Yacht Club de France, da Société des Régates Rochelaises e da Union Nationale des Croiseurs. É preciso ressaltar que o General Chaigneau e o Comodoro Pillorget também foram proprietários do Danycan.
Os vencedores e a história
“Danycan, um barco de prestígio” foi a manchete da revista Le Yacht do dia 18 de março de 1961. No período de 1954 a 1961, o desempenho desse veleiro foi respeitável. Ele venceu a Plymouth-La Rochelle, em 1957 com Guy Tabarly, enquanto iates de prestígio como Myth of Malham, Sea Scamp, Hallali, Jocasta, Cutty, Esquirol, Carentan e outros também faziam parte da frota. Ele ficou em 4º lugar na classificação RORC de 1960. Em seguida, ele apareceu com frequência nas capas de revistas como Bateaux e Les Cahiers du Yachting. O arquivo Beken, da cidade de Cowes, ainda guarda algumas fotografias desse veleiro.
O Danycan velejou e competiu com frequência ao lado de barcos bastante conhecidos e alguns deles ainda velejam ou participam de regatas. Além de suas belas linhas, esse antigo cruiser-racer tem um passado de prestígio, contribuindo para a ofensiva dos iatistas franceses contra a hegemonia anglo-saxônica nas corridas RORC, durante a década de 1950, coroada com a vitória de 1964. Além disso, antes de atingir a fama, o Danycan recebeu a bordo, no contexto das regatas de cruzeiro oceânico, um homem que agora é considerado uma lenda da vela francesa, bem como seu pai, Guy Tabarly, membro leal da tripulação, de 1954 a 1961. Eric Tabarly afirma em seu livro Mes bateaux et moi (1974), publicado em 1976: “como os barcos de corrida oceânica geralmente não tinham tripulação suficiente, meu pai e eu nos juntamos a bordo de nossos primeiros barcos de corrida locais: Farewell, em La Trinité, e depois o Danycan de La Rochelle. Estávamos vivendo os primórdios das regatas de cruzeiro na França, uma era do aprendizado…” Algumas páginas depois ele declara: “Adeus… Danycan… Sem dúvidas, esses veleiros modernos me mostraram o oceano e a competição, mas eu seria injusto se não mencionasse o importante papel desempenhado pelo velho Pen Duick em minha vocação como piloto oceânico…”
Obras de conservação 2009-2016
Iniciada em 2009, no estaleiro Chantier des Charpentiers de Marine Camarétois, com a substituição de algumas peças vivas, a restauração continuou até 2013 com a ajuda da DRAC (Direction régionale des affaires culturelles) e das autoridades locais da Região da Bretanha, do Departamento de Finistère e da Comuna de Crozon (peças vivas, repotenciação, convés, cockpit e barrotes, cordame, velas, acessórios do convés, acessórios internos, retoques finais). O Danycan foi registrado como Monumento Histórico em 2011. O trabalho foi realizado por artesões da península de Crozon sob a supervisão de Jacques Pichavant, especialista do Ministério da Cultura. O arquiteto Georges Auzepy-Brenneur também prestou grande apoio. Em 2016, com a permissão do DRAC, o estaleiro Guip foi contratado para substituir parte da estrutura axial da parte traseira, incluindo a popa, uma operação complexa que me permitiu dar os toques finais no restauro.
O Danycan comemorou seus 70 anos em 2019!
Em comemoração ao seu aniversário, eu tinha o desejo de publicar um livro que contasse não apenas a história desse iate e de sua tripulação, sua contribuição para a ascensão do iatismo francês no período pós-guerra, seu passado compartilhado com Pen Duick e a família Tabarly e o que aconteceu com os outros iates da época, mas sua restauração na península de Crozon e as primeiras temporadas após seu renascimento.
Bibliografia
Eugène Cornu (1903-1987) é arquiteto naval e marinheiro francês. Desenhista talentoso, ele projetou vários navios e regatas durante a Segunda Guerra Mundial, mas continua famoso por seus veleiros, como o Licorne e o Belouga.↩︎
NdT: Parte do casco não submersa, da linha d’água até a extremidade da haste ou da linha d’água traseira até a extremidade da popa. Fonte.↩︎
NdT: Grand Ouest é uma região da França que abrange a Bretanha e o País de Loire.↩︎
NdT: Placas longitudinais no nível do casco que unem as partes superior e inferior. Fonte.↩︎