"Je suis moi-même mon propre symbole, je suis l'histoire qui m'arrive : en roue libre dans le langage, je n'ai rien à quoi me comparer (...)." "Innombrables sont les récits du monde."
Roland Barthes
O título deste breve ensaio remete, explicitamente, ao título do livro de Pierre Bourdieu - Lição da aula 1 (Leçon sur la leçon, 1982) -, que constitui o texto da aula inaugural que o sociólogo francês proferiu, dia 23 de abril de 1982, no Collège de France. Nessa mesma famosa instituição da capital francesa, Michel Foucault (1926-1984), pronunciara, em 1970, a aula magna, intitulada "A ordem do discurso". A 7 de janeiro de 1977, Roland Barthes (1915-1980) inaugura, no Collège de France, a cadeira de semiologia literária com um texto, denominado Leçon. Passadas quase três décadas desse discurso do semiólogo de Cherbourg, perguntamo-nos que lições podem-se tirar de sua semiologia inaugural ou, em outros termos, que significações essa aula ainda engendra, no campo semiológico, quanto às questões do ensino, do saber e do poder.
Sabe-se que Roland Barthes (1915-1980) foi impossibilitado, tanto pela doença - uma tuberculose, que o prendeu, por vários anos, no sanatório Saint-Hilaire de Thouvet, nos Alpes franceses -, quanto por uma situação financeira precária, de "prestar o concurso de ‘Normal superior’ e portanto de aceder à prestigiosa elite universitária" (SULGER-BÜEL, 2005, p. 16), condição essa que lhe teria causado, segundo seu biógrafo Louis-Jean Calvet, um trauma (CALVET, 1990, p. 256), talvez vencido quando, em 14 de março de 1976, a assembléia dos professores do célebre Collège de France, em Paris, rival da não menos famosa Sorbonne, aceita sua candidatura como professor. Ardorosamente desejada por Barthes, essa candidatura fora proposta por seu amigo Michel Foucault (1926-1984)
Nessa mesma prestigiosíssima instituição da capital francesa, Michel Foucault pronunciara, em 1970, a aula magna, intitulada "A ordem do discurso". Inserindo-se num panteão científico-literário, onde já figuram, desde sua fundação por François I, em 1529, por exemplo, Paul Valéry (1871-1945), Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), Claude Lévi-Strauss (1908-), Roland Barthes aí inaugura, a 7 de janeiro de 1977, a cadeira de semiologia literária, ao mesmo tempo que inicia um novo período de sua vida - um período breve e último, todavia fulgurante como um pôr-de-sol. A conferência de pose do novo professor e de abertura do novo curso denomina-se Leçon (Aula). Passadas quase três décadas desse discurso do semiólogo de Cherbourg, perguntamo-nos que lições podem-se tirar de sua semiologia inaugural ou, em outros termos, que significações essa aula ainda engendra, no campo semiológico, quanto às questões do ensino, do saber e do poder. Aqui, notamos que o título do livro do sociólogo Pierre Bourdieu - Lição da aula (Leçon sur la leçon, 1982) - constitui o texto da aula inaugural que o sociólogo francês proferiu, dia 23 de abril de 1982, no mesmo Collège de France; portanto, as aulas magnas geram lições... Aqui, caberia citar o incipit do mais recente estudo de Leyla Perrone-Moisés sobre a Aula, por ela traduzida:
" Em sua Aula Inaugural do Collège de France, Roland Barthes traçava as linhas gerias do ensino que pretendia ministrar naquela casa. Infelizmente, pouco tempo de vida lhe restava para cumprir aquele programa. Apenas três cursos foram oferecidos por ele, de 1977 a 1980, que corresponderam ao auge de sua fama como escritor, mas também a uma fase depressiva de sua vida pessoal, caracterizada pelo luto por sua mãe e a perda do entusiasmo em sua escritura. "
(PERRONE-MOISÉS, 2005, p. 131)
"Semeio a todos os ventos" ("Je sème à tous vents" ) é a epígrafe da Enciclopédia Larousse, epígrafe essa que poderia coroar a obra barthesiana, na medida em que, tangida por várias teorias e métodos diversos - o marxismo, o existencialismo, a lingüística, o estruturalismo, a semiologia, a psicanálise, a sociologia, a epistemologia, o formalismo, a fenomenologia, o biografismo -, enfoca um corpus extremamente diversificado, abrigando a literatura, a moda, o teatro, a alimentação, o mito, a história, o cinema, a pintura, a música, o noticiário, a publicidade, a voz, a arte, a música, a crítica, a fotografia, os carros, a luta livre, os objetos, enfim, todos os temas da cultura de sua (e nossa) época. Manuseando, portanto, uma pluridisciplinaridade avassaladora, a partir da análise rigorosa das alienações produzidas pelas imagens e pelos objetos que invadem a vida cotidiana, nosso Autor não exerce uma crítica apática, sem afeto, visto que sua escritura (écriture), ligada à voluptuosidade e ao gozo, atravessa os reflexos do mundo contemporâneo e se aventura na intimidade do desejo de escrever e do prazer do texto (le plaisir du texte). A respeito da ruptura que Barthes executa nas etiquetas que os críticos e divulgadores insistiam em colar ao seu perfil cultural, poderá ponderar Alain Robbe-Grillet que:
" tendo percorrido ao longo dos anos os meandros do materialismo dialético, da psicanálise e da lingüística, em pouco tempo começará a denunciar a ditadura dos ‘nossos três policiais: Marx, Freud e Saussure’. Depois de manejar com prazer evidente e habilidade perversa a arte do discurso, Barthes afirma que ‘toda fala é fascista’ ".
(ROBBE-GRILLET: 1995, p. 13)
No entanto, a semeadura barthesiana não opera ao deus-dará: desde o inaugural O grau zero da escritura (Le degré zéro de l’écriture, 1953) ao crepuscular Incidentes (Incidents, 1987), o escritor (écrivain) de Fragmentos de um discurso amoroso (Fragments d’un discours amoureux, 1977) enceta um horizonte insofismável, ainda que recuse uma sistematização, incompatível com o caráter estilhaçado de sua escritura, sempre em aberto. A obstinação de um "atopia" não se distingue de uma migração sócio-cultural, maneira exemplar de radicar-se na modernidade: o debate, iniciado no texto primeiro de 1953, retoma-se e renova-se, na mutação de dominantes críticas. Com efeito, na produção febril de Barthes, os saberes movimentam-se, através da escritura, em torno da literatura, identificada como exercício da linguagem, como prática na linguagem, como texto ou malha de significantes, "o próprio aflorar da língua" (BARTHES, s.d.: 17). Se ele confessara ter "uma doença", porque "via a linguagem", pode-se, também afirmar que ele "via" a literatura, na medida em que toda a sua obra, apreendendo o mundo contemporâneo em sua complexa diversidade, é atravessada por esse leitmotiv ou fantasma. Definitivamente, Barthes, como expressou Maurice Nadeau, é "enraivecido da linguagem" e alucinava a linguagem e a literatura. Na "Introdução" de O grau zero da escritura, propõe-se nosso Autor a "traçar uma história da linguagem literária que não é nem a história da língua, nem a dos estilos, mas apenas a história dos Signos da Literatura (…)" (BARTHES, 1984: p. 117), isto é, redes de conotação que a constituem como tal; segue-se esta significativa consideração, que abre a "Primeira parte" de seu livro primeiro:
" Sabe-se que a língua é um corpo de prescrições e de hábitos comuns a todos os escritores de uma época. Isso quer dizer que a língua é como uma Natureza que passa inteiramente através da fala do escritor, sem contudo dar-lhe forma alguma e nem sequer alimentá-la: é como um círculo abstrato de verdades, fora do qual - e somente fora dele - começa a depositar-se a densidade de um verbo solitário ".
(BARTHES: 1984, p. 121)
Na pesquisa recorrente da língua, a conotação, ou "memória segunda", oferece o sentido irrevogavelmente histórico e, portanto, humano:
" (…) Trata-se de fazer vir à tona não o que é, mas o que significa. Por quê? Porque o que nos interessa é a comunicação humana e ela sempre implica um sistema de significações, isto é, um conjunto de signos discretos, destacados de uma massa insignificante de materiais. "
(Pour une psycho-sociologie de l’alimentation contemporaine: 1961, p. 982)
O autor de Criticq e verdade (Critique et vérité, 1966) sonha com "uma coexistência pacífica das linguagens críticas" (BARTHES: 1984, p. 254), e promove, pois, um deslocamento (déplacement, signo nuclear da teoria, crítica e escritura bartesianas), que encontra um ponto de repouso (jamais um ponto morto), um ponto de fuga e um ponto de inflexão na reflexão, moderna e contemporânea par excellence, ao redor da linguagem. Orientando sua árdua, e amorosa, pesquisa em torno de diferentes eixos, Barthes tudo relaciona à natureza do significado, produzido na e pela linguagem. Se, conforme salienta Robbe-Grillet, "é um pensamento que deslizou e que vai continuar a deslizar sempre, de metáfora em metáfora" (1995, p. 32), a linguagem significa a metáfora das metáforas.
Leçon - pequeno e maiúsculo livro (de 39 páginas, na edição original) - aflora como súmula do pensamento barthesiano, a aula magna que inaugurou, em 7 de janeiro de 1977, por indicação de Michel Foucault (BARTHES, 1978: p. 9), no Collège de France, a cadeira de semiologia literária. Local de uma fundação, o Collège de France marca, igualmente, o lugar de uma partida, já que ali, em frente, foi Barthes atropelado por um caminhão, acidente que o levou à morte, "estúpida e prematura" (Silviano Santiago), a 26 de março de 1980. (Não teria o semiólogo visto o sinal ou o motorista do nefando veículo teria infringido o código de trânsito? Segundo, até, uma leitura romântica, Barthes ter-e-ia suicidado!). Haverá mais coisas entre uma tragédia e uma escola tradicional do que possa inventar (ou ler) nossa vã semiologia. A Aula barthesiana sintetiza, quase sistematiza, mas, com certeza, articula, as idéias disseminadas por todos os seus textos, que, desde sempre, tematizaram, de uma forma ou de outra, o problema da significação, que se insere, com plenos poderes, na linguagem, de que a literatura é forma privilegiadíssima, ímpar sistema de significações. Será Barthes, segundo seu romancista Philippe Roger, "exagéré en Littérature" (1986,p. 341). Leçon pode ser lida como uma resposta à célebre pergunta de Sartre (1905-1980) - "O que é a literatura?" -, diálogo entretecido sob o prisma da semiologia - ciência dos signos -, um estudo, à época, ainda incipiente, e de que Barthes elabora uma espécie de manifesto ou texto de arauto, de mensageiro dos signos, de colecionador de fragmentos sígnicos, de "anjo anunciador", como o define Robbe-Grillet, seu "antigo companheiro de armas" (1995, p. 14), onde se abrange e se abraça tudo o que é língua. Como semiólogo, ele "vê" a linguagem, modelada na teoria saussuriana do signo, como a base para a leitura da estrutura da vida social e cultural, e considera a língua como "um imenso halo de implicações, de efeitos, de repercussões, de voltas, de rodeios, de redentes" (BARTHES, s.d.: p. 20).
Seguindo as pegadas do Mestre, que abomina a crítica dita "regular", "cosmética, que recobre a obra sem a dividir, (na qual) as duas operações recomendadas são: resumir e julgar", orientamo-nos por uma crítica "bizantina", que irá decompor a Aula de Barthes.
Fiel a seu título (de acordo com Umberto Eco, um "título modesto e orgulhosíssimo", ECO, 1984: 314) - Aula -, o texto organiza-se de uma maneira exatamente didática, sem as reiteradas derivas às quais está habituada a escritura barthesiana, que trabalha, com fervor, certas figuras de retórica, como o quiasmo e o paradoxo: pela modalidade do quiasmo, joga com o fato de todo discurso funcionar por repetição e por inversão dos mesmos elementos; já, modulando com o paradoxo, aponta os efeitos contraditórios dos mesmos signos, espelhando-se nas dobras do texto, o que configura uma contra-dicção. Ao invés de um caráter fragmentário, método de sua escritura, o discurso de Leçon, porque quase um plano de aula, expõe-se dissertativamente (BARTHES, 1978: 42), enxertado de aforismos, como a palavra de um oráculo. Tecido de excursos ("uma palavra preciosamente ambígua: a excursão", BARTHES, s.d: 39-40), este texto do Mestre estrutura-se, pode-se dizer, em cinco partes: protocolos de entrada, a questão do poder, a natureza da língua, o elogio da literatura, a face da semiologia, a viagem da semiologia literária. Não significa este mapeamento de partes constitutivas que a Aula obedeça a um modelo cartesiano, todavia, usando um método dedutivo, vai do mais amplo - o poder - ao mais específico: a semiologia literária, cuja cadeira se instaura, naquele 7 de janeiro de 1977. Tampouco colocam-se, de forma estanque, os temas que cada uma das cinco partes enfoca; antes, a questão do poder, cujo codinome é "Legião", entretece todas as discussões, até porque, na esteira foucaultiana de Vigiar e punir: nascimento da prisão (1975), "o saber é poder". Na malha da Aula ficam claros, não só o método, como os autores tutelares, aqueles aos quais o semiólogo discursante recorre e sobre os quais apóia a sua argumentação, definitivamente intertextual. Fazem parte do panteão barthesiano, exposto no Collège de France: Michelet, Jean Baruzi, Valéry, Merleau-Ponty, Benveniste, Foucault, Nietzsche, Kierkegaard, Marx, Freud, Mallarmé, Pasolini, Jakobson, Renan, Deleuze, Victor Hugo, Chateaubriand, Dante, Klossovski, Sartre, Brecht, Saussure, Tomas Mann. Rendendo homenagem a esses autores, modernos, em sua grande maioria, Barthes, talvez obliquamente, tencionasse dar uma resposta àqueles que o acusavam de "reacionário", pelo fato de tratar quase exclusivamente de escritores do passado, com exceção do texto sobre Sollers. Aliás, na parte quase final desse discurso, ao tratar do Texto (com letra maiúscula mesmo), Barthes referirá o texto, antigo ou moderno, como o lugar do eterno retorno da semiologia e da literatura, o lugar onde esses dois discursos do saber se encontram; e, na derradeira rubrica - a semiologia literária -, ele insistirá sobre a viagem para coisas "antigas e belas" (BARTHES, s.d., p. 42). Em Leçon, o novo professor constitui uma assembléia, em que ele, anfitrião, orquestra a discussão, operando um novo banquete, não mais em torno do amor, como em Platão; dessa feita, o prato principal é o poder, contraposto às pièce-de-résistence: ensino e literatura. E, em se tratando de escritura à la Barthes, com muito sabor, como convém à "Sapientia" (BARTHES, s.d., p: 47). A semiologia, reinaugurada por Barthes, não se aparenta à filosofia, etimologicamente definida como amor à sabedoria. A semiologia literária, barthesianamente enunciada, tem a ver com o sabor da sabedoria, neologicamente "sapientiologia" ou ciência dos signos do sabor da sabedoria, lugar, onde "a escritura faz do saber uma festa" (BARTHES, s.d.: p. 21).
Nos protocolos de entrada, o conferencista declara-se "um sujeito incerto" (BARTHES, s.d.: 7) 2 já sinalizando o caráter fortemente pessoal (falando, mais adiante, à p. 32, da semiologia, confessa: "je sais ce qu’une telle définition a de personnel"; e, à página 39: "la sémiologie de celui qui parle ici"), quiçá, autobiográfico de seu discurso, entremeado de "biografemas" ("se fosse escritor, e morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um amigável e desenvolto biógrafo, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: biografemas", BARTHES: 1979, p. 14) ou dados biográficos ficcionalizados. Se o modernismo, de cariz europeu, sobretudo na estética do Nouveau Roman, capitaneado por Alain Robbe-Grillet, postulando, através de "uma dieta de emagrecimento", uma literatura pura e seca, sem corpo, expulsara do texto o autor, Barthes resgata, nesta Aula, o sujeito que fala, "le sujet d’une pratique" (BARTHES: 1978, p. 26), inserido, quer queiram ou não, no discurso. Mais adiante, no movimento da Aula, modifica-se o epíteto: "un sujet incertain" torna-se "un certain sujet" (p. 32); é interessante notar que é a quarta, em que o recém-empossado professor refere-se explicitamente ao Collège de France. Como era esse "sujeito", incerto ou certo? Robbe-Grillet vê-o olhando-se ao espelho: "(…) a augusta silhueta de senador romano, que dava a impressão de enredar-se nas dobras de sua toga., o belo rosto reflexivo, que unia os bons modos de Sócrates à sabedoria de Buda, não passavam eles, aos seus olhos, de uma mistura facilmente identificável de languidez incurável de temperamento com empazinamento precoce de bon vivant" (ROBBE-GRILLET: 1995, p. 12). Passos à frente, o sujeito que discursa ainda se exibe: "Si j’étais législateur - supposition aberrante pour quelqu’un qui, étymologiquement parlant, est un an-archiste (…) " (L: p. 24). O signo "anarquia" repete-se, quando, aludindo ao déplacement com relação ao poder, o semiólogo inscreve "anarchie langagière - là où la langue tente d’échapper à son propre pouvoir, à sa propre servilité (L: p. 27). Esse "sujet impur" (L: p. 8) é recebido no tradicionalíssimo Collège de France, fato que o faz transbordar-se de alegria, mais do que de honra. Feitas as apresentações iniciais - do sujeito e do lugar -, Barthes aponta a questão de seu discurso: o poder, tratado "indirectement mais obstinément" (L: p. 10), em que o advérbio "indiretamente" soa mais como eufemismo, na medida em que o poder será o corpus insofismável do discurso e o signo "poder" encerrará o discurso, mesmo se em sua negação, ou denegação: "nul pouvoir" (p. 46). Que poder é esse? Plural, sem dúvida; disseminado em todas as partes; explícito ou implícito; dizendo, ou não, o seu nome: "j’appelle discours de pouvoir tout discours qui engendre la faute, et partant la culpabilité, de celui qui le reçoit" (p. 11).
A partir desta nota, todas as referências a Leçon são dessa edição e virão, entre parêntesis, com a letra L seguida do número da página.
Na terceira parte, Barthes identifica o lugar perene do poder, ou, mais precisamente, "son expression obligée: la langue" (L: p. 12), denunciada neste contundente aforismo: "Ainsi, par sa structure même, la langue implique une relation fatale d’aliénation" (L: p. 13). Logo a seguir, outro aforismo articula-se, remetendo a Jakobson, citado anteriormente, à página 12, em que refere à ordo ("repartição e cominação"), que a língua, código dos códigos, detém:
" Mais la langue, comme performance de tout langage, n’est ni réactionnaire, ni progressiste; elle est tout simplement: fasciste; car le fascisme, ce n’est pas d’empêcher de dire, c’est d’obliger à dire. "
(L: p. 14)
Na construção dessa máxima, salta aos olhos a pontuação idiossincrática da escritura barthesiana, que estranha, levando, inclusive, uma aluna minha, de pós-graduação em arte, a chamar minha atenção - quando insistia, mais uma vez, que todos os meus alunos comprassem a Aula de Barthes - no sentido de que havia, no seu livro, recém-adquirido, um "erro de tradução ou impressão". Tranqüilizei a jovem senhora, citando outro, conhecido e amadíssimo, transgressor da sintaxe, Mário de Andrade (1893-1945), autor, inclusive, de uma Gramatiquinha, que, na faina da invenção de uma língua brasileira, visando ao revigoramento de uma consciência criadora nacional, detonou a sintaxe lusa.
Sem mais delongas, Barthes chega ao coração mesmo de seu texto, ao objeto de seu desejo de escritor ("un monsieur parmi d’autres", L: p. 17), ao seu engajamento de cidadão: a literatura, cujo sedutor elogio ele tece na quarta parte de sua preleção. Pela literatura, trapasseia-se com a língua, trapasseia-se a língua:
" Cette tricherie salutaire, cette esquive, ce leurre magnifique, qui permet d’entendre la langue hors pouvoir, dans la splendeur d’une révolution permanente du language, je l’appelle pour ma part: littérature. "
(L: p. 16)
Como sinônimos de literatura, nosso Autor arrola os signos "escritura" ("a prática de escrever") e "texto" ("o tecido dos significantes"). Descarta, portanto, como literatura, o acervo de obras, o mercado ou o ensino; a literatura encena o jogo das palavras e o escritor, pelo deslocamento exercido na língua e pelas forças da liberdade que a literatura propicia, assume "une responsabilité de la forme" (L: p. 17). Barthes declina, então, com três palavras do étimo grego e remetendo, insofismavelmente, à fundadora Poética, de Aristóteles, as três forças da literatura: "Mathésis, Mimésis, Sémiosis (L: ib.), virtudes de que o Mestre retórico pronunciará o panegírico.
Porque enciclopédico, o "monumento literário" abriga todas as ciências mas "la littérature fait tourner les savoirs" (L: p: 18), recusando-se uma natureza monolítica e definitiva. O drama da linguagem, feita escritura, consiste na reflexão do saber sobre o próprio saber, configurando a "reflexividade infinita", em que a literatura engrena o saber (L: p. 19).
Já no seu aspecto de representação (Mimésis), a Aula barthesiana estrutura-se, abertamente, sob o signo do paradoxo, na medida em que coloca "brutalmente", como objeto de representação, efetuada pela literatura, o real, "impossível", inatingível, irrepresentável, portanto. Mais acima, afirmara, tratando da monumentalidade da literatura: "C’est en cela que l’on peut dire que la littérature, quelles que soient les écoles au nom desquelles elle se déclare, est absolument, catégoriquement, réaliste: elle est la réalité, c’est-à-dire la lueur même du réel" (L: p. 18). Sob a rubrica da segunda força da literatura, a impossibilidade de representar o real e o desejo, insaciável e insaciado, de representá-lo constituem a literatura, "realista" e "irrealista", ao mesmo tempo, estatui Barthes, sem medo de contradizer-se, porque a literatura "croit sensé le désir de l’impossible" (L: p. 23). Faz par com esse paradoxo um belo quiasmo: "l’utopie de la langue est récupérée comme langue de l’utopie" (L: p. 25), encruzilhada ou cruz ("quiasmo" origina-se do grego, significando a letra "x", "cruzamento").
Outro paradoxo vem arrematar o quesito da representação, agora em torno de dois verbos: "s’enteter" e "se déplacer", "teimar" e "deslocar-se", no vernáculo. Pela teimosia, a literatura resiste aos "discursos tipificados" e o escritor seria um prostituto da linguagem, visto que se coloca "à la croisée de tous les autres discours"(L: p. 26). A partir daí, a literatura desloca-se, promove uma "anarchie langagière", articula um jogo, algo teatral.
Tête-à-tête com a semiologia, Roland Barthes, apontando o jogo com os signos - força semiótica da literatura -, contrapõe a semiologia e a lingüística; se, pela distinção saussureana do par Langue/Parole (Língua/Fala), a "sémiologie a eu le courage de commencer (L: p. 30), a oposição entre esses dois saberes estabelece-se, na medida em que a lingüística explode-se, ou por excesso de conteúdos, ou por ascese formal. A partir daí, Barthes redefine a já definida canonicamente semiologia como "science des signes, science de tous les signes" (L: p. 29):
" C’est cette desconstruction de la linguistique que j’appelle, pour ma part, sémiologie" (L: p. 30). Pois que "langue et discours (…) glissent sur le même axe de pouvoir(L: p. 30), a lingüística trabalha sobre um objeto "abusivement propre et pur" (L: p. 31), ao passo que a semiologia "recueil l’impur de la langue, le rebut de la linguistique, la corruption immédiate du message: rien moins que les désirs, les craintes, les mines, les intimidations, les avances, les tendresses, les protestations, les excuses, les agressions, les musiques, dont est faite la langue active ".
(L: p. 31-32)
Tendo estabelecido sua definição "pessoal" de semiologia ("ma sémiologie", L: p. 32), o professor-semiólogo passa a expor seu método de ensino, na cadeira que inaugura; o sujeito "incerto", posto nos umbrais do discurso, transmuta-se em "certo sujeito", imerso numa aventura (seu L’aventure sémiologique viria a lume, pela Seuil, em 1985), sujeito movido pela paixão (L: p. 32). Sua "primeira semiologia" ( "por volta de 1954"), voltada para um objeto político e apoiada em Sartre, Brecht e Saussure, abordava, como ciência dos signos, os estereótipos sociais; todavia, essa semiologia reinaugurado no Collège de France, embora mantendo o mesmo objeto político, desloca-se e colore-se diferentemente, a partir da "rupture de mai 68" (L: p. 33), momento seminal, quando o poder começou a manifestar-se como "catégorie discursive", dividindo-se, estendendo-se, "comme une eau qui court partout" (L: p. 33). Nessa passagem, ocorre um retorno ao começo da Aula, em que o falante apontava o caráter legionário do poder, suas mil e uma faces (L: p. 11). Esta semiologia fundadora volta-se para o Texto, pois "le Texte lui apparu comme l’index même du dépouvoir" (L: p. 34):
" Le Texte contient en lui la force de fuir infiniment la parole grégaire (celle qui s’agrège), quand bien même elle cherche à se reconstituer en lui; il repousse toujours plus loin - et c’est ce mouvement de mirage que j’ai essayé de décrire et de justifier tout à l’heure, en parlant de la littérature. "
(L: p. 34)
Definitivamente, a literatura opera, na clave barthesiana, um constante deslocamento para longe dos topoi da cultura politizada.
A semiologia, que, ultrapassando a fronteira de mera metalinguagem - marca, como qualquer outra, do científico -, fala dos signos com signos, trava relações com as outras ciências, primeiramente uma relação ancilar, isto é, a semiologia torna-se uma prestadora de serviços, funciona como "chaire mobile" (L: p. 38), é uma espécie de curinga do saber hodierno. Como corpus privilegiado, essa semiologia tem "les textes de l’Imaginaire: les récits, les images, les portraits, les expressions, les idiolectes, les passions, les structures qui jouent à la fois d’une apparence de vraisemblabe et d’une incertitude de vérité" (L: p. 39).
Com a crise do ensino, eclodida em maio de 68 (L: p. 40), deve-se voltar para a semiologia literária :
" ce voyage qui permet de débarquer dans un paysage libre par déshérence: ni anges ni dragons ne sont plus là pour le défendre; le regard peut alors se porter, non sans perversité, sur des choses anciennes et belles, dont le signifié est abstrait, périmé: moment à la fois décadent et prophétique, moment d’apocalypse douce, moment historique de la plus grande jouissance. "
(L: p. 41)
Tendo por objeto o discurso do poder, conforme ditado logo no início da Aula, o poder do discurso a ser proferido por Barthes será submetido a um método que não imponha um discurso, porque o que oprime no ensino são as formas discursivas que transmitem o saber ou a cultura (L: 42). E, então, alegorizando o ensino da semiologia, o orador oferece uma belíssima imagem de sua digressão ou excursão em torno do poder, em torno da linguagem, em torno do discurso: a criança que brinca em torno da mãe, a quem oferece um mimo qualquer, desenhando assim "autour d’un centre paisible toute une aire de jeu" (L: p. 43), onde o cascalho ou outra coisa qualquer importam menos que "le don plein de zèle" (L: p. 43), o dom cheio de zelo. O ensino funda-se, portanto, na área do desejo e do afeto, com suas idas e vindas, suas voltas e reviravoltas, seus fantasmas e suas viagens. No Collège de France , ou em outro lugar, Barthes, ou outro professor, terá a atividade de pesquisar e de falar e de "rêver tout haut sa recherche" (L: p. 9).
Antes de concluir sua legendária Aula, Barthes, começando, aos 52 anos, como Michelet o fizera aos 51 anos, uma "vita nuova", acha por bem classificar as épocas de um professor: primeiramente, ensina-se o que se sabe; depois, vem a era da pesquisa, quando se ensina o que não se sabe; finalmente, chega a idade "de désapprendre, de laisser travailler le remaniement imprévisible que l’oubli impose à la sédimentation des savoirs, des cultures, des croyances que l’on a traversés" (L: p. 46).
Narra Robbe-Grillet que, ao término da Leçon, de Barthes, a que assistira e que muito lhe tinha agradado, uma jovem, supostamente jornalista de Nouvelles littéraires, abordou-o com violência, vociferando: "Mas afinal, o que foi que ele disse? Em suma, ele não disse nada" (ROBBE-GRILLET: 1995, p. 33-34). A esse questionamento, que, em nada, contradizia a satisfação que o romancista sentira ao ouvir seu amigo, Robbe-Grillet apenas respondeu: "Claro, ele nada disse, ficou sem parar deslizando de um sentido que escapa a um outro sentido que também escapa" (ROBBE-GRILLET: 1995, p. 34). Com efeito, o pensamento ou discurso barthesiano reside no próprio movimento do deslizamento, que funda a felicidade da ciência da semiologia, ansiosa por ultrapassar a ciência, por não deixar o sentido enclausurado, pois "le signe doit être pensé - ou repensé - pour être mieux déçu" (L: p. 35).
POSFÁCIO AO POSFÁCIO
"As relações que mantenho com o texto de Barthes são por isso
relações de indivíduo para indivíduo, de corpo a corpo".
Alain ROBBE-GRILLET, Porque amo Barthes, p. 13.
"A Aula Inaugural de Barthes pode ser vista como um prisma ou um
caleidoscópio. Toda a obra anterior de Barthes nela está retratada,
tudo aí volta, deformado e reformado do ponto de vista atual, a
partir do qual ele olha esse passado de escritura e ensino".
Leyla Perrone-Moisés, Lição de casa. In: BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, s.d., p. 5
Quantas vezes ter-me-ei debruçado sobre Leçon, texto da legendária aula magna de Roland Barthes, inaugurando, no Collège de France, em 7 de fevereiro de 1977, a cadeira de semiologia literária?
Corria o ano da graça de 1986, quando, por indicação da professora de metodologia científica, no curso de pós-graduação lato sensu em literatura brasileira, que eu freqüentava, retomando meus estudos universitários e rompendo drasticamente com uma carreira burocrática, indicou o livrinho Aula, de certo Roland Barthes. Foi amor à primeira leitura. Foi um choque. Foi um espanto e tanto. Desde então, tornou-se aquele texto minha bíblia profana ou bíblia perversa, que ensina os descaminhos, que propõe a encruzilhada, que trata da abjuração.
Anos mais tarde, quando eu já era doutor em poética pela UFRJ e professor de arte na UFF, reencontrei, por mero acaso, aquela professora, chamada Marília, na travessia de catamarã entre Niterói e o Rio de Janeiro; ela estava diferentíssima: não usava roupas coloridas, não exibia uma maquiagem exuberante, não falava fervorosamente. Vestia-se com um terninho sóbrio, discursava pausadamente, tinha um rosto sério. Tornara-se advogada, abandonando, literalmente, a literatura, porque, segundo ela insistiu comigo, se cansara de, na qualidade de professora universitária, não ter dinheiro. Estávamos os dois na contramão um do outro: eu largara uma profissão bem paga de burocrata para abraçar a pobreza franciscana do professor. Qual dos dois era realmente barthesiano? A quantos descaminhos - ou derivas - conduz a Aula de Barthes? No meio da Baía da Guanabara, um diálogo se instalara em torno de Barthes, sinalizador de caminhos inversos, mas sempre, para usar um termo recorrente na sua Aula: perversos.
Quando fui atuar, pela primeira vez, num programa de pós-graduação, o de letras, da UFF, imediatamente adotei a Aula barthesiana, não como cartilha, mas como texto a ser saboreado, degustado, ruminado, destroaçdo, fragmentado, em sua consistência didática e em seu movimento dialético. Lembro-me de que, no limiar de meu curso, disse aos pós-graduandos: comecemos pelo fim, pelo lindo posfácio da Leyla Perrone-Moisés, a tradutora brasileira dessa pequena obra-prima. Na "Lição de casa", escrita ou prescrita pela professora paulistana, há o episódio daquele jovem, portando uma écharpe, que queria inscrever-se no curso de pós-graduação, que ela oferecia. Essa cena ficou rodopiando em minha imaginação. E, um belo dia, ou melhor, uma bela noitinha, enquanto eu aguardava a hora de entrar em sala, fui abordado por um jovem, que me solicitava poder assistir a meu curso. Imediatamente, revi a cena narrada no posfácio a Aula e permiti que ele, Eduardo, fizesse parte do grupo. Anos mais tarde, esse estudante, já tornado ator, diretor de teatro e escritor, enviou-me, por Internet, um texto seu, onde, sendo entrevistado por uma revista de Curitiba por ocasião do espetáculo que apresentava na capital paranaense, declarou que eu era seu "professor inesquecível". Emocionado com a homenagem, declarei-lhe que o tinha, nos corredores da UFF, aceitado como aluno por não poder resistir àquele sorriso, amplo, translúcido, acolhedor. Passado mais tempo, recebi do Eduardo esse nome de rei era também o seu, convite para assistir a uma peça de sua autoria e que estava sendo exibida no Rio de Janeiro; o espaço em que se passa a narrativa, chama-se "Escola Prof. Latuf". Quando me recordo da bela e surpreendente homenagem, me arrepio totalmente até hoje, como se dirigida a outra pessoa, que não eu; endereçada a outrem, que eu represente; a um personagem que eu prefigure, pela " força estranha" (Caetano Veloso) da arte.
Este ano de 2003, tive a oportunidade de, no Encontro Sul da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada), encontrar a Leyla Perrone-Moisés, a quem falei sobre a influência de seus textos, sobretudo do posfácio à Aula, em minha lida de professor e em minha vida. Quando, aludindo à sua cena do jovem com a écharpe, referi o fato do jovem do sorriso franco, ela me confessou que aquele mesmo jovem lhe pedira, em Paris, para poder freqüentar as aulas do Barthes, no Collège de France. Perguntando ao Mestre se o estudante brasileiro poderia participar, Barthes colocou três condições, nesta exata ordem: qu’il soit beau; qu’il soit intelligent; qu’il ne soit pas réactionnaire.
A cada vez que releio a Aula Inaugural de Barthes é como se estivesse lendo um novo livro; não me lembro mais do que havia lido tantas e tantas vezes. Segundo Robbe-Grillet, que decora todos os textos de que gosta (ROBBE-GRILLET: 1995, p. 12), Barthes vive na "bruma-memória", incapaz de reter textos de cor: " (…) no que me toca, nada sei de cor", comenta Barthes (ROBBE-GRILLET, p. 19). Nada memorizando de Aula, consolo-me quando me deparo com este aforismo do Mestre: "J’entreprends donc de me laisser porter par la force de toute vie vivante: l’oubli" (BARTHES: 1978, p. 45). Parafraseando o bruxo de Cosme Velho, pergunto-me, a cada leitura espantada: mudou a Aula ou mudei eu? Talvez ambos mudamos. E, retomando o próprio Barthes, inscrevo que não contesto as lições da Aula: derivo. A quantas derivações barthesianas hei ainda de ser arrastado?
Quando fui informado do evento na UFRJ, denominado "Saberes em movimento", homenageando Roland Barthes, pensei, imediatamente, em apresentar proposta de comunicação em torno da Aula: não questionei meu primeiro impulso, deixei-me levar pela intuição, segui meu desejo imediato. Fui, então, procurar meu livrinho, datado de 7 de outubro de 1986. Não o encontrava. Rezei a São Longuinho, mas nada de o danadinho do livro dar as armafanhadas caras. Tive que comprar outro, já na 9a. edição. Inda bem que custa só 12 reais. Chegando a casa com o novo livrinho, reencontrei o primeiríssimo em lugar que, de tão óbvio, não percebera: também meus livros se deslocam, provocando-me e causando inquietações, que, a posteriori, me produzem significações. Em busca do livro perdido, acho outros em que não pensara e que se tornam, num passe de mágica, importantes, indispensáveis mesmo, no momento da criação. Para escrever meu primeiro texto sobre Aula, recorri ao original, que tenho com a seguinte dedicatória, datada de 12 de dezembro de 1991: "Em homenagem ao seu sucesso e à sua brilhantíssima "Leçon" no concurso da UFF, esta Leçon do grande mestre, que continuará, sem dúvida, inspirando outros sucessos seus". Assinam-na: Edson e Teresa (Edson Rosa da Silva e Teresa Cerdeira são professores da UFRJ).
De minha mais recente leitura de Aula, de Barthes, escrevi um primeiro texto, a ser apresentado, dia 29 de setembro de 2003, na VI Semana de Letras Neolatinas, na UFRJ (" A Aula de Barthes: signos disseminadores de inquietações, ou o dom cheio de zelo"), a que se seguiu este posfácio ao posfácio de Leyla Perrone-Moisés. O fato de, só agora, passados 17 anos de meu primeiro contato, na Praça Paris, no Rio de Janeiro, com o pequeno grande livro, não significa que esse livrinho não me tenha provocado um texto; aliás, alguns alunos meus já fizeram, sob minha orientação, trabalhos em torno de Aula. Este texto inaugural de Barthes circula tanto dentro de mim, que quase, sem nenhuma falsa modéstia, acho que ele é meu, meu e de todos, um poema plural, como sonhava Apollinaire a respeito da poesia que deve ser feita por todos. Sem dúvida, em quase duas décadas de tirocínio no magistério, o texto de Aula inscreve-se no meu corpo, que vai circulando, numa área de afeto e jogo. Afinal, ser professor significa, antes de tudo e o tempo todo, ser um cidadão que exerce seus direitos e deveres através de seu magistério, que não se circunscreve às quatro paredes de uma sala de aula, mas que se abre a derivações e gozos todos.
Para arrematar estas breves considerações sobre a Aula de Barthes, retomo um longo parágrafo, com que o Mestre, na rubrica, intitulada "Leitura", encerra seu belíssimo Crítica e verdade, de 1966 :
" Assim ‘tocar‘ um texto, não com os olhos, mas com a escrita, abre, entre a crítica e o leitura, um abismo, o mesmo que qualquer significação abre entre o seu bordo significante e o seu bordo significado. Porque, tanto do sentido que a leitura dá à obra como do significado, nada se sabe, talvez porque esse sentido, sendo o desejo, se estabelece para além do código da língua. Só a leitura ama a obra, mantém com ela uma relação de desejo. Ler é desejar a obra, é pretender ser a obra, é recusar dobrar o obra fora de qualquer outra fala que não a própria fala da obra: o único comentário que um puro leitor, que puro se mantivesse, poderia produzir, seria o decalque (como indica o exemplo de Proust, amante de leituras e de decalques). Passar da leitura à crítica é mudar de desejo: é deixar de desejar a obra para desejar a própria linguagem. Mas, pelo mesmo acto, é também remeter a obra para o desejo da escrita, que a gerou. Assim, gira a fala em torno do livro: ler, escrever, de um desejo para o outro caminha a leitura. Quantos escritores não escreveram por terem lido? Quantos críticos não leram para escrever? Aproximaram os dois bordos do livro, as duas faces do signo, para que daí saísse uma só fala. A crítica é apenas um momento dessa história em que entramos e que nos conduz à unidade - à verdade da escrita ".
(BARTHES: 1987, p. 77)
Escrevendo "Roland Barthes: crítica e verdade", Eduardo Prado Coelho, alude ao "paralelo fascinante entre a leitura e o desejo", esboçado por Barthes, e conclui seu ensaio nestes termos: "Creio que tudo isto nos lembra irresistivelmente a expressão admirável de René Char, quando nos diz que a obra de arte é "l’amour réalisé du désir demeuré désir" (COELHO: 1972, p. 109). Definitivamente, a escritura barthesiana promove a semiologia de um texto desejante. E o desejo não cessa.
Referências bibliográficas
BARTHES, Roland. Novos ensaios críticos seguidos de O grau zero da escritura. São Paulo: Cultrix, 1984.
Aula. São Paulo: Cultrix, s.d.
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Pour une psycho-sociologie de l’alimentation contemporaine. Annales, set-out. 1961, n. 5: p. 982.
Leçon. Paris: Seuil, 1978.
Sade, Fourier e Loiola. Lisboa: Ed. 70, 1979.
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COELHO, Eduardo Prado. O reino flutuante. Lisboa: Ed. 70,1972.
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ROBBE-GRILLET, Alain. Um Roland Barthes a mais. In: Roland Barthes artista amador. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.
Porque amo Barthes. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.
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SULGER-BÜEL, Romaric. Viver junto. In: CASA NOVA, Vera e GLENADEL, Paula (org.). Viver com Barthes. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p. 15-20.