Uma objeção ameaça meu título: como chamar Derrida de hiperfenomenólogo, isto é, de excessivamente fenomenólogo, se até mesmo nos seus textos em torno da fenomenologia o que ele fez foi desconstruí-la? A desconstrução é, pois, o nome daquilo que impediria meu título avançar. E se, de minha parte, estou convicto em poder contrariar esta previsão, ou seja, se posso provar a legitimidade de meu título, fazendo-o prosseguir, isso não implica, contudo, que por ora eu possa deixar de recuá-lo, devendo, portanto, assumir a empresa de definir o vocábulo desconstrução em sua singular generalidade.
Assumida de uma maneira geral, a desconstrução derridiana pode ser tematizada como uma estratégia de leitura do texto filosófico que tem o intuito de questioná-lo - a partir dos próprios conceitos pelos quais ele se afirma -, denunciando a violência decorrente de seu teor metafísico, pois a metafísica, por determinar o sentido do ser a partir do princípio da presença plena fundada na idealidade, garante sua identidade, ou seja, a pureza de sua interioridade excluindo violentamente dali tudo aquilo que considera empírico, factual, acidental, mundano, material, sensível, isto é, tudo o que, em última instância, pode ser pensado, por oposição à presença ideal, como ausência, como contingência. Isso porque a presença plena é postulada pela metafísica como a transcendência de uma origem pura e simples, e já que tal presença é contaminada pelo desvio considerado secundário da ausência (contingente), esta deve, de direito, ser reduzida a fim de que se restaure, por uma decisão teleológica, a pureza e a plenitude da presença ideal. Em outras palavras, o ser enquanto presença é a origem e o telos da metafísica.
Pode-se perceber, assim, que a metafísica trabalha a partir de oposições binárias, privilegiando o termo da oposição que se encontra numa posição hierárquica superior em relação ao seu correlato opositivo. Dessa maneira, constata-se que os conceitos que fundamentam a filosofia, dentre eles, o inteligível, o ideal, o de direito, o necessário, o dentro só adquirem sua identidade e primazia à custa da redução dos termos que mantêm com eles uma relação de oposição, que na presente ocasião são, respectivamente, o sensível, o empírico, o de fato, o contingente, o fora. Nesse caso, o empirismo poderia ser lido como uma maneira de escapar à metafísica, pois se fundamenta por aquilo mesmo que ela reduz. No entanto, a filosofia empirista, por assimilar ingenuamente a própria definição de empiria construída pela metafísica, e por perpetuar a noção de fundamento, acaba por recair na metafísica, mantendo a oposição binária ao promover uma mera inversão desta, em que o empírico assume, dentre os pólos opositivos, o lugar da presença, situando-se na posição hierárquica superior. Portanto, segundo Derrida, reivindicar contra a metafísica o seu fora, isto é, aquilo que ela opõe, é ainda valer-se da oposição inaugural dentro/fora que consolidou o estatuto metafísico. Por aí já se pode notar na metafísica uma totalidade, um fechamento, já que o seu fora é determinado a partir de seus próprios termos, o que assegura para ela uma identidade a si, fechando uma totalidade em que o domínio da presença figura como origem e telos, conforme foi explicitado acima.
Essa totalidade, esse fechamento que Derrida visualiza impele-o a solicitar a metafísica. Ele se vale da palavra solicitar decompondo-a e redimensionando-a a partir de sua etimologia, que em latim significa "abalar o todo". É preciso estar atento para o fato de que Derrida critica a metafísica não no sentido de superá-la, como se fosse possível sinalizar seu fim a fim de se situar para além dela. Ao contrário, Derrida argumenta que é necessário operar a partir dos conceitos metafísicos. Portanto, Derrida não determina o fim da metafísica, mas sim seu fechamento, também entendido como clausura (clôture). Assim, paradoxalmente, é somente ao tomar a metafísica como um sistema com uma totalidade fechada que se pode, operando nessa trama, encontrar ali a heterogeneidade que denuncia a impossibilidade de qualquer pretensa totalidade homogênea ou identidade plena, pois o momento em que algo se apresenta o mais coincidente e redutível a si mesmo é justamente o momento em que se mostra uma abertura para o seu fora, que, diferentemente do fora que a metafísica determina como seu oposto para reduzi-lo, é um fora irredutível, um excesso que já reside originariamente no dentro, instaurando-se como uma não-presença a contaminar a pureza da presença. É importante notar que a valorização dada por Derrida à não-presença não implica uma simples inversão de uma oposição binária, como no caso do empirismo, mas a necessidade de, para além da inversão, promover, num único gesto, um deslocamento, um afastamento, um espaçamento irredutível, de modo a abalar o caráter opositivo e hierárquico da estrutura. Para Derrida, portanto, a não-presença, longe de ser meramente o elemento da oposição subjugado pela metafísica - como se fosse uma negação derivada da idealidade da presença -, é o deslocamento, o espaçamento na interioridade metafísica, ou seja, é a marca de um fora radical que já habitava o dentro do sistema metafísico, não podendo, por isso, ser reduzida.
Ao propor o termo différance, Derrida encontra algo que num dado sistema é indecidível, pois não pode ser demonstrado a partir dos recursos do sistema em questão. A letra a inscrita deliberadamente no interior desse vocábulo mostra que há uma diferença na escrita que não se realiza na fala, pois em língua francesa não há distinção de pronúncia entre différence e différance. Para potencializar a compreensão dessa intervenção aparentemente simples operada numa única palavra por Derrida, emito algumas considerações acerca da relação da metafísica com a linguagem.
Como já foi explicitado, é o ser enquanto presença a origem fundante da metafísica. Nesse caso, a metafísica não precisaria de linguagem, já que toda linguagem é representação, portanto, algo derivado da presença. No entanto, é a linguagem determinada a partir dos princípios da lógica que reativa a presença em seu valor de idealidade, pois a forma privilegiada de dizer o ser é a sua conjugação na terceira pessoa do indicativo do presente, ou seja, o verbo ser conjugado como "é", o que o torna um substantivo, um ente, ou, se preferirmos, um significado que supostamente existiria fora do jogo relacional e diferencial dos significantes. Assim, a proposição ideal por excelência seria aquela representada pela forma lógica "S é P". Tal é o caráter logocêntrico da metafísica. E o elemento da linguagem que, segundo a metafísica, mais tem o privilégio de manter a idealidade da presença sem o risco de perder-se na exterioridade empírica é a voz, pois eu me ouço no momento em que falo, sem o desvio de signos escritos que podem ameaçar a restituição da presença plena. É aí que reside o estatuto fonocêntrico da metafísica denunciado por Derrida. Dessa maneira, pelo fonologocentrismo, a metafísica institui um domínio da linguagem que, apesar de ser representativa, tem a vantagem ardilosa de ser uma representação transparente, com uma absoluta diafaneidade, pois pode, em última instância, ser apagada diante da presença plena a que ela se adere. A fala teria, portanto, o privilégio de assegurar a presença a si, a temporalidade homogênea e absoluta, sem a contaminação de qualquer elemento que a frature, que promova um espaçamento no interior de tal temporalidade fundada no presente. Nesse sentido, a metafísica opõe a fala à escrita, considerando esta última mera representação gráfica daquela. A escrita, então, é vista como uma empiricidade qualquer, tendo seu valor apenas enquanto registro mnemônico do pensamento puro reduplicado sem desvios pela fala. Além disso, a escrita é desvalorizada e rebaixada pela filosofia pelo fato de que a intuição evidente daquele que está em presença diante do objeto ideal (ou do significado transcendental) se perde na exterioridade dos signos escritos, pois estes ameaçam a restauração da origem, já que podem funcionar com sentidos inesperados em contextos diferentes daquele em que foram produzidos.
Pode-se ver, assim, que a metafísica é um sistema que, para ser consistente, ou seja, para que não tenha contradições internas, deve considerar a escrita como seu fora, seu oposto, como uma ausência, já que é a fala que garante a pureza de sua interioridade por ser o meio pelo qual o logos acede plenamente à presença, apresentando (tornando presente) a idealidade, isto é, o próprio fundamento da metafísica. Em suma, a filosofia metafísica é um sistema baseado na fala, que é o único elemento da linguagem capaz de se unir, sem desvio nem contaminação, à idealidade da presença. Ora, mas a metafísica se vale do seu fora, do seu oposto, isto é, da escrita para demonstrar a hegemonia da presença. Entretanto, Derrida nos ensina que o que a ela se opõe, ou seja, seu fora, é por ela comandado, situado numa posição inferior. Noutras palavras, pela oposição dentro/fora, o fora só o é em relação ao dentro, a partir das determinações deste. Isto é, a escrita, segundo a metafísica, deve ser fonética, uma mera camada derivada e secundária totalmente realizável na fala.
Ora, mas como a letra a do vocábulo différance se furta à apropriação pela fala, apenas se oferecendo à leitura, isso faz Derrida afirmar que não há escrita puramente fonética. Para robustecer tal afirmação, Derrida evoca outros exemplos da escrita que, igualmente, não são realizados na fala, tais como a pontuação, as aspas, os parênteses, o espaçamento entre caracteres etc. A partir daí, deriva-se que a escrita não é uma representação material da fala, ou seja, não é uma contingência, uma empiricidade, mas opera originária e irredutivelmente no interior da própria fala, como um espaçamento, um rastro, o que implica dizer que a representação, isto é, o secundário está na origem. Conseqüentemente, não há origem: tudo começa pelo derivado. Assim, a escrita é, para Derrida, um indecidível, pois escapa à oposição metafísica entre presença (ideal) e ausência (contingente), tornando-se, dessa maneira, uma não-presença originária e irredutível, isto é, um rastro, um espectro. Essas reflexões acerca da escrita, de uma certa necessidade ou idealidade da escrita, levam Derrida a criar termos como arqui-rastro, arquiescrita, que noutros contextos figuram como espectro, não-presença, suplemento de origem etc.
Tendo em vista tudo o que já foi até aqui apresentado em torno da noção derridiana de escrita (arquiescrita), podemos seguramente afirmar que ela - por comportar em si própria a indecidibilidade, a contaminação - combina repetição e alteridade, substituição e singularidade, que é aquilo que Derrida chama de iterabilidade.
Enquanto repetição, a escrita é o elemento do mesmo, da idealidade. Contudo, o mesmo da escrita, ou do significante, não é o mesmo tal como postulado pela metafísica, já que para esta o mesmo é o idêntico. No caso da escrita, o mesmo não é idêntico a si, não tem identidade (ou interioridade) plena - está aberto à exterioridade -, pois um significante só é o que é em sua relação diferencial com os outros significantes que ele não é. Dessa forma, é apenas a alteridade não identificável (aquilo que o significante não é) que garante a idealidade do significante, permitindo que ele se repita como o mesmo. O significante é, portanto, o rastro do outro, que é igualmente rastro, pois o outro só pode se dar a partir do rastro. Assim, visto que o que a escrita repete não é uma origem, uma presença ou uma essência que lhe sejam anteriores, que lhe transcendam (ao contrário, é a partir do apagamento do rastro que são constituídos tais valores), o mesmo que nela se repete está assegurado por um jogo de substituições que marca, nesse mesmo que é repetido, uma alteridade, uma diferença irredutível, pois nunca se substitui uma presença supostamente existente fora do significante, fora da escrita ou do rastro.
Sumarizando e complementando a definição da desconstrução que aqui se performa, pode-se dizer que ela surgiu como uma denúncia ao rebaixamento e apagamento da escrita em favor da fala que a filosofia metafísica efetuou desde Platão. Já vimos os desdobramentos operados por Derrida em torno dessa questão. O que importa aqui frisar é que a transformação do conceito corrente de escrita em arquiescrita, ou seja, o alargamento da noção de escrita provocado por Derrida dá-se segundo o princípio de iterabilidade, princípio este que participa de todos os demais operadores textuais ou quase-conceitos derridianos (não-presença, suplemento, arqui-rastro, hímen, parergon, contaminação originária, etc.), o que permite Derrida passar pelos mais diversos temas, tais como, por exemplo, a política e a ética, em que aparecem outros quase-conceitos, tais como hospitalidade incondicional, dom, amizade, democracia porvir etc. Desse modo, há uma continuidade em seu pensamento, já que ele é, de ponta a ponta, atravessado pela noção de iterabilidade.
Pelo que enunciei acerca da desconstrução derridiana, poder-se-ia supor que ela se descola, desde o princípio, de qualquer tradição, tendo, de direito, uma plena autonomia em relação a qualquer pensamento determinado. Ou seja, mesmo que a desconstrução tenha surgido historicamente a partir da leitura derridiana da fenomenologia, pois Derrida iniciou seu percurso intelectual desconstruindo-a, o fato de que outros sistemas filosóficos tenham sido posteriormente desconstruídos permitiria inferir retrospectivamente que a desconstrução nada deve à fenomenologia.
Ora, o que pretendo afirmar é justamente que a noção de hiperfenomenologia aqui proposta guarda uma íntima relação com a desconstrução. E como a desconstrução opera em todo o percurso do trabalho de Derrida, para muito além de seus textos sobre a fenomenologia, a relação - quase de sinonímia - que estabeleço entre desconstrução e hiperfenomenologia torna possível inferir que em todas as etapas da desconstrução permanece um rastro, um espectro irredutível de Husserl. Para tanto, uma predicação do que intento chamar de hiperfenomenologia faz-se necessária.
Hiper no sentido de hybris. Um excesso, um rastro, um resto originário e irredutível. Derrida, de tão fiel ao texto da fenomenologia de Husserl, acaba por traí-la, por excedê-la, mostrando que ela não se reduz a si mesma, que aquilo que ela precisa excluir para garantir seu princípio intuicionista é a ela inerente, sendo a condição necessária à sua constituição. Assim, é apenas no interior do texto fenomenológico e a partir dele que Derrida verifica os meios para contestar a fenomenologia em seu teor metafísico. E como esses meios continuam - de uma maneira ou de outra - a funcionar mesmo nos textos derridianos alheios à questão propriamente fenomenológica, isso permite a interpretação de que é daí que se deriva o que se entende por desconstrução. Assim, ao contrário do que possa parecer, é por um gesto de fidelidade à desconstrução que eu aqui a redimensiono nos termos de uma hiperfenomenologia, já que, dessa maneira, o momento Derrida-leitor-de-Husserl deixa de ser mera faticidade para adquirir uma iterabilidade originária, reiterando-se como espectro ao longo da obra de Derrida.
Quando defini a desconstrução em traços gerais, já anunciei, mesmo sem fazer a mínima referência à fenomenologia, os espectros de Husserl na obra de Derrida. Tais espectros manifestam-se em todos os operadores textuais desconstrutivos, que, apesar de singulares, são atravessados por uma noção de escrita governada pelo princípio da iterabilidade. Resta agora, por meio de um movimento retrospectivo, referi-los à fenomenologia, de modo que apareçam efetivamente enquanto tais, ou seja, como espectros husserlianos. Noutras palavras, faz-se necessário compreendê-los em sua gênese, isto é, na própria leitura elaborada por Derrida em torno de Husserl.
As análises de Derrida acerca da fenomenologia de Husserl têm sempre uma dupla face: por um lado, Derrida denuncia a filiação de Husserl à metafísica da presença, que se manifesta no princípio dos princípios da fenomenologia, isto é, no princípio intuitivo que reside na forma do presente vivo; por outro, ele encontra, em momentos decisivos das descrições fenomenológicas, a implicação de uma não-presença originária e irredutível, o que o permite contestar o princípio intuicionista da fenomenologia a partir dela mesma. Conseqüentemente, os recursos que Derrida extrai da fenomenologia para descontruí-la são reiterados por ele no decurso de sua obra, independentemente das múltiplas e díspares temáticas abordadas. Finalmente, conclui-se, a partir daí, que toda a desconstrução derridiana carrega rastros husserlianos irredutíveis.
Evoco uma declaração em que o próprio Derrida, partindo de um comentário sobre sua primeira publicação, confirma o que foi exposto em todo o parágrafo anterior:
" (…) láIntroduction à láOrigine de la géométrie máavais permis dáapprocher quelque chose comme láaxiomatique impensée de la phénoménologie husserlienne, de son « principe des principes », à savoir láintuitionisme, le privilège absolut du présent vivant (…). Cette axiomatique impensée paraissait limiter le déploiement dáune problématique conséquente de láecriture et de la trace dont L’Origine de la géométrie désignait pourtant la nécessité, et sans doute pour la première fois avec cette rigueur dans láhistoire de la philosophie. Husserl y situait en effet le recours à láécriture dans la constitution même des objets idéaux par excellence, les objets mathématiques, mais sans approcher - et pour cause - la menace que la logique de cette inscription faisait peser sur le projet phénoménologique lui-même. Naturellement, tous les problèmes travaillés dans l’Introduction à l’Origine de la géométrie náont plus cessé dáorganiser les recherches que je tentai plus tard autour de corpus philosophiques, littéraires, voire non discursifs, notamment graphiques ou picturaux : je pense par exemple à láhistoricité des objets idéaux, à la tradition, à láhéritage, à la filiation ou au testament, à láarchive, à la bibliotèque et au livre, à láécriture et à la parole vive, aux rapports entre sémiotique et linguistique, à la question de la vérité et de l’indecidable, à l’irreductible altérité que vient diviser láidentité à soi du présent vivant, à la necessité de nouvelles analyses concernant les idéalités non mathématiques, etc. 1 "
De uma vez por todas: se a desconstrução pode ser concebida como uma hiperfenomenologia, isso ocorre porque ela é, antes de tudo, a radicalização das reduções fenomenológicas de Husserl.
Derrida mostra que Husserl, apesar de propor a redução das teses da atitude natural, postula, como motivação à própria redução, uma tese. O presente vivo, sendo a forma ideal e concreta que garante a presença a si dos atos subjetivos diante da presença das objetividades ideais inexoravelmente produzidas por tais atos, é a tese implícita da fenomenologia que a vincula à metafísica da presença. Assim, Husserl, mesmo tendo criticado a metafísica, nela recai. Segundo Derrida, isso já estava de certa forma previsto, pois as críticas dirigidas à metafísica por Husserl tinham por objetivo restaurar a metafísica autêntica, que teria sido desviada de seu verdadeiro sentido ao longo da história da filosofia.
" Poderíamos perceber o motivo único e permanente de todos os erros e de todas as perversões que Husserl denuncia na metafísica "degenerada" através de uma multiplicidade de campos, temas e argumentos: há sempre uma espécie de cegueira diante do modo autêntico da idealidade, aquela que é, que pode ser repetida indefinidamente na identidade da sua presença pelo próprio fato de que ela não existe, não é real, é irreal, não no sentido da ficção, mas em outro sentido que poderá receber vários nomes, cuja possibilidade permitirá falar da não-realidade e da necessidade da essência, do noema, do objeto inteligível e da não-mundanidade em geral. Essa não-mundanidade não sendo uma outra mundanidade, essa idealidade não sendo um existente caído do céu, a sua origem será sempre a possibilidade da repetição de um ato produtor. Para que a possibilidade dessa repetição possa abrir-se idealiter ao infinito, é preciso que uma forma ideal assegure essa unidade do indefinidamente e do idealiter: é o presente, ou antes, a presença do presente vivo. A forma última da idealidade, na qual, em última instância, pode-se antecipar ou lembrar toda repetição; a idealidade da idealidade é o presente vivo, a presença a si da vida transcendental. A presença sempre foi e sempre será, até o infinito, a forma na qual, como podemos dizer apoditicamente, se produzirá a diversidade infinita dos conteúdos. 2 "
Pela citação acima, nota-se que Husserl, apesar de condenar a metafísica em função do conceito de idealidade por ela sustentado, renovando-o, reafirma pressuposições metafísicas ao fundá-lo na presença do presente vivo. Tal conseqüência, no entanto, deve-se tão-somente ao fato de que Husserl tomou a decisão de manter-se fiel ao imperativo intuicionista de "voltar às coisas mesmas". Ou seja, se ele tivesse radicalizado sua proposta de redução das teses, a tese intuicionista que sustenta o princípio da fenomenologia teria sido reduzida, e a noção de idealidade por ele renovada apareceria em toda sua originalidade, pois, se Derrida, por sua vez, reduziu a tese da intuição, potencializando a redução transcendental ao infinito, isso só foi possível em virtude da noção de idealidade que Husserl defendeu em contraposição à idealidade que reinava até então no âmbito da metafísica:
" (…) percebe-se já [desde a Filosofia da Aritmética, o primeiro livro de Husserl] uma preocupação que não o abandonará jamais: aquela da origem concreta, na experiência subjetiva da percepção, das significações ideais e dos objetos científicos (…) que, em razão de sua exatidão e de seu valor objetivo universal pareciam, de direito, independentes, em sua procedência, de toda experiência psicológica, da multiplicidade dos eventos psíquicos, dos atos dos quais eles são o pólo. Até então, na história da metafísica, a alternativa era a seguinte: ora não se respeitava a objetividade e a universalidade [dos objetos ideais] - inscritas, entretanto, em seu sentido -, reenviando-os à experiência sensível, à sua origem psicológica: este era o gesto do empirismo, notadamente nos filósofos ingleses; ora, ao contrário, para dar conta de sua universalidade, de sua necessidade inteligível, atribuía-se aos objetos ideais e às verdades matemáticas que eram deles o modelo um lugar eterno fora da experiência e da história, topos noetos em Platão, entendimento divino nos grandes racionalistas cartesianos, estrutura a priori do espírito finito em Kant, cuja noção de "formas universais da sensibilidade pura" assegurava uma função análoga. Estava-se, no fundo, sempre privado diante da difícil questão da origem: a história da metafísica era a história dessa privação. Na verdade, o empirismo e o racionalismo estavam sempre obscuramente justapostos, e sua cumplicidade será o alvo de Husserl. 3 "
Pode-se afirmar que Derrida adota para si o mesmo problema de Husserl: a origem da idealidade. Ambos pretendem, portanto, investigar o modo pelo qual algo se repete como o mesmo. Mas se, para Husserl, a idealidade se origina em atos fundados na intuição, para Derrida, a origem da idealidade é a alteridade radical, o que o leva a transformar a idealidade em iterabilidade. Em todo caso, a afirmação husserliana de que os atos que produzem a idealidade devem também ser ideais será levada às últimas conseqüências por Derrida, que reduz a tese de que esses atos devem estar preenchidos pela presença intuitiva. Da mesma forma, tal redução da intuição só foi possível a partir de um lapso deixado pelo próprio Husserl, pois, em A origem da geometria, Husserl acabou por reconhecer a necessidade da escrita na constituição dos objetos ideais. Derrida infere, a partir daí, que não pode haver idealidade sem a escrita. E como a idealidade não pode ser originada de uma empiricidade, pois do particular não se chega ao universal, a própria escrita torna-se, para Derrida, ideal. A escrita seria, portanto, constituinte, não podendo, por essa razão, ser reduzida. Porém, ela não pode ser fundada na presença intuitiva; seu fundamento é uma diferença radical, o que faz de sua idealidade a própria iterabilidade. É por isso que Husserl, a fim de manter-se fiel ao seu princípio intuicionista, não radicalizou sua afirmação acerca do caráter necessário (portanto, não contingente) da escrita, pois ela ameaça o valor de presença inerente à intuição. Por estar associada aos predicados que são passíveis de redução, tais como a exterioridade, a facticidade, a empiricidade, o caráter de mediação, o risco de morte e de ausência etc, a escrita deve, para Husserl, ser reduzida. Todo o trabalho de Derrida consiste, portanto, em transformar esses predicados em originários, em constituintes. Conseqüentemente, a escrita, por ser definida através de tais predicados, torna-se, igualmente, originária, irredutível: arquiescrita. Enfim, o que Derrida faz em sua desconstrução nada mais é do que fundamentar a afirmação husserliana de que a escrita é a origem da idealidade, reivindicando para a escrita seu estatuto merecidamente essencial e necessário.
Referências bibliográficas
ALTER - Revue de phénoménologie. Derrida et la phénoménologie. Paris: Édition Alter, número 8, 2000.
Obras de Derrida
A escritura e a diferença. SP: Perspectiva, 1995
A farmácia de Platão. SP: Iluminuras, 1997
A voz e o fenômeno: introdução ao problema do signo na fenomenologia de Husserl. RJ: Jorge Zahar, 1994.
Du droit à la philosophie. Paris: Édition Galilée, 1990.
Gramatologia. SP: Perspectiva, 1999.
Introdução e tradução. In: HUSSERL, Edmund. L’origine de la géométrie. Paris: PUF, 1962.
Le problème de la genèse dans la philosophie de Husserl. Paris: PUF, 1990.
Limited Inc.. Campinas: Papirus, 1991.
Margens da filosofia. SP: Papirus, 1991.
Posições. BH: Autêntica, 2001.
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Jacques Derrida. Du droit à la philosophie. Paris: Éditions Galilée, 1990, pp. 445-446. ↩
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Jacques Derrida. A voz e o fenômeno: introdução ao problema do signo na fenomenologia de Husserl. RJ: Jorge Zahar, 1994, p. 12. ↩
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ALTER - Revue de phénoménologie. Derrida et la phénoménologie . Paris: Éditions Alter, número 8, 2000, p. 72. A tradução é minha. ↩